(Não) Confiar nos jornais
O caso do momento é o acórdão do STJ que reduz a pena a um homem condenado por abuso sexual de menores. A micro-notícia do Público é parca em explicações e pelo menos tão farta em opiniões como o que é imputado ao colectivo de juízes responsáveis pela apreciação. Nestas coisas, havendo paciência para isso, nada como ir à fonte. O que se retira do texto do acórdão não são necessariamente as conclusões que se podem retirar ao ler o texto do Público. O Público, embora refira o enquadramento social do acusado, opta por conferir maior atenção à questão da medida da pena em função da idade dos menores e a uma suposta “crítica à primeira instância por valorizar em demasia os crimes sexuais”. Contudo, não só não parece existir tal crítica, mas um reparo às distorções introduzidas pelo tratamento mediático, como o acórdão reconhece a relevância do impacto social deste tipo de crimes. Mais, argumenta com a entretanto consumada desacreditação da identidade social do acusado e com o desajustamento da pena à luz da experiência e dos condicionalismos específicos do caso. E refere aquilo que parece ser algo que o senso-comum suporta sem dificuldades: que o abuso de crianças com menor idade será potencialmente mais chocante e mais atentatório para o seu saudável desenvolvimento.
O acórdão é extenso, mas, aos olhos de um leigo, esta parece ser a parte relevante para confrontar com o que foi noticiado:
“Neste condicionalismo, considerando que o dolo, sendo directo, não apresenta especificidades em relação ao dolo requerido pelo tipo, e que a ilicitude é mediana, para usar a expressão usada na decisão da 1.ª instância, corroborada pelo acórdão da Relação, considerando ainda as circunstâncias relativas à personalidade do arguido e que foram destacadas na decisão recorrida a partir do relatório social, reproduzido na sua essência na factualidade provada, a sua primariedade, a sua integração familiar e, de acordo com a própria decisão condenatória, a sua estigmatização no meio em face deste processo, apesar de anteriormente se poder considerar que o arguido estava plenamente integrado socialmente , a pena aplicada mostra-se claramente excessiva e desproporcionada, justificando, assim, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal.
Na verdade, o STJ tem poderes para rever a medida da pena, não relativamente ao quantum exacto, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado (...), mas já quando tiverem sido violadas as regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada ( FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 197).
No caso, como dissemos, o quantum fixado é de todo desproporcionado, atendendo não só às regras da experiência, como a todo o condicionalismo acima exposto com relevância legal para a determinação concreta da pena.
O tribunal da 1.ª instância, com o aval da Relação, sobrevalorizou a componente da prevenção geral positiva, filtrada através da sua relevância mediática, com as distorções que uma tal abordagem do problema ocasiona, sabido que a culpa se impõe como limite intransponível das exigências de prevenção geral. Essa sobrevalorização está bem patente em certos passos da decisão da 1.ª instância, que a Relação acolheu, ao menos confirmando essa decisão. A título de exemplo, mencione-se esta passagem: "Por outro lado, no que concerne às necessidades de prevenção geral positiva, há que ponderar o facto de que a natureza deste tipo de crime é susceptível de causar alarme social, sobretudo numa época em que os processos de pedofilia têm relevância mediática e a sociedade está mais desperta para esse flagelo. Por conseguinte, as necessidades de prevenção geral positiva são relevantes, pois que (...) a reposição da confiança dos cidadãos nas normas violadas e a efectiva tutela dos bens jurídicos cuja protecção se visa assegurar pela incriminação deste tipo de condutas assim o impõe".
Ora, concedendo embora em que as necessidades de prevenção geral positiva são relevantes, não se pode concordar, todavia, com a relevância que acabaram por adquirir.
Deste modo, estando a pena abstractamente aplicável balizada pelo mínimo de 3 anos de prisão e pelo máximo de 10 anos, entende-se que a pena mais adequada ao caso, conciliando as referidas exigências de prevenção geral com a culpa e tendo em atenção o estigma social já provocado no arguido, é de 4 anos de prisão.
8.4. Há, pois, que refazer o cúmulo jurídico à luz da pena agora aplicada, por sinal constituindo a parcela mais alta.
E, nesta sede, considerando o critério específico estatuído pelo art. 77.º, n.º 1 do CP, ou seja encarando os factos em globo em conjugação com a personalidade unitária do recorrente, somos levados a concluir que o recorrente revela tendência para a prática deste tipo de crimes, o que, de resto, ressalta da própria factualidade provada. Todavia, há que ver que os crimes considerados, exceptuado o relativo ao menor FF aqui analisado, não passaram de tentativa ou, então, como no caso do crime de abuso cometido através de conversa obscena, não têm uma relevância muito significativa. Assim, a actuação mais marcante no conjunto dos factos é mesmo a que se refere ao menor FF.
Nesta perspectiva, entre o mínimo aplicável de 4 anos de prisão e o máximo de 7 anos e 3 meses (art. 77.º, n.º 2 do CP), não se justifica uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão.”
(versão integral do acórdão - via GLQL)
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