Thursday, June 29, 2006

"Calem-se as mulheres nas assembleias, pois não lhes é permitido falar; mostrem-se submissas, como diz a própria Lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-no em casa aos seus maridos, porque não é decente que a mulher fale na Igreja."
1ª Epístola aos Coríntios, 14:34-35


Parecem não restar dúvidas que Paulo terá escrito a 1ª Epístola aos Coríntios que se encontra incluída no Novo Testamento. Contudo, a autoria dos versículos 34 e 35 do capítulo 14 mostra-se um assunto bastante mais problemático. Vários motivos, apontados pelos especialistas, levam a crer que não só Paulo não teria escrito essas linhas como a sua opinião sobre a participação das mulheres na vida da Igreja teria sido algo diferente. Em vários outros momentos, em cuja autoria não oferece dúvidas, Paulo fala de forma abonatória, ou pelo menos neutra, da participação das mulheres nas actividades da Igreja e refere mesmo algumas que desempenhavam funções de liderança ou de relevo no seu seio.

Contudo, como se vê, num texto que foi escolhido para figurar na Bíblia, alguém terá decidido acrescentar um retoque de características claramente misóginas. A questão, aqui, nem é tanto a da autoria de tal parágrafo nem a da fidelidade deste às convicções de Paulo. O que se depreende destas deturpações dos originais é que não só foram, em algum momento, consideradas necessárias por alguma pessoa ou por algum grupo, como recolheram a aceitação da opinião pública, tanto na altura como nos séculos que ainda estavam para vir. O que está em causa é um problema de ideologias. Apesar de se tratar, muito provavelmente, de uma falsificação, a redacção do parágrafo da 1ª Epístola aos Coríntios que remete as mulheres ao silêncio traduz uma visão das relações sociais entre homens e mulheres e dos lugares reservados para uns e outras. A sua publicação e subsequente aceitação revela, por seu lado, uma mentalidade dominante disposta a suportar essa versão dos relacionamentos. Trata-se de um círculo viciado. Algures no meio social existe uma visão misógina do lugar da mulher; falsifica-se então um texto de cariz teológico de acordo com essa mesma visão; esse texto passa, assim, a conferir legitimidade à visão misógina que, de facto, lhe esteve na origem.

Essa ideologia, essa visão da mulher perante o homem, vingou na altura, vingou através dos tempos e continua a vingar hoje. Dir-se-á que percorremos um longo caminho e que hoje as mudanças para melhor na igualdade de direitos são uma realidade inegável. Mau seria que não o fossem. Percorremos, efectivamente, um longo caminho. Alteraram-se, efectivamente, as mentalidades. Mas terá sido o suficiente? Tem a mulher o lugar de igualdade na sociedade a que, também inegavelmente, tem direito?

Os factos parecem apontar o contrário e os discursos produzidos sobre o tema traem várias vezes as boas intenções que pretendem veicular. Sobre o número de mulheres a desempenhar cargos de relevo, já muito se disse. São poucas, apesar de não lhes faltarem as qualificações. Os lugares de topo estão sobretudo preenchidos por homens que recrutam sobretudo homens. Nas sociedades ocidentais não existem barreiras oficiais à participação das mulheres na vida pública, mas essa participação continua a ser dominado pelos homens e esse é um sinal ao qual não se pode ficar indiferente. Apesar de não serem sociedades assumidamente discriminatórias para a mulher, o domínio masculino só pode oferecer desconfiança.

As regras sociais podem possuir tanta ou mais força que as regras legais. Mais ainda, enquanto as regras legais são mais claramente percebidas como construção, as regras sociais apresentam-se, a maior parte das vezes, de forma "natural". Mas as regras sociais têm tanto de construção como as regras legais. Simplesmente, enquanto estas últimas se encontram coligidas em códigos, a partir dos quais é possível descobrir o exacto momento da sua origem e traçar o seu percurso desde então, as primeiras vivem há muito no acervo colectivo da cultura e das práticas da sociedade. Perde-se assim a perspectiva de construção social que lhes deu origem e as manteve, para ganharem, por substituição, um peso de realidade "natural" e "inquestionável".

As ideologias têm a característica de se transformarem em realidades opacas. Ou melhor, de se confundirem com a realidade. Uma ideologia é uma visão do que o mundo deve ser, de acordo com determinado grupo social, e não o que o mundo efectivamente é. Mas pode ser muito difícil discernir o que é realidade e o que é ideologia. Existe um grupo intitulado Associação Mulheres em Acção que, entre outras coisas, defende a participação activa das mulheres na vida pública e em termos de igualdade com os homens. Entre os seus argumentos consta a defesa dos "valores propriamente femininos". Ora, embora não se saiba exactamente o que querem as Mulheres em Acção dizer com "valores propriamente femininos", sabe-se, desde há algumas décadas, que os papéis sociais do homem e da mulher são socialmente determinados. São as sociedades que constroem as identidades sociais para os homens e para as mulheres. Mas quando um grupo que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres integra no seu discurso uma visão das identidades de género que é, ela mesma, de certa forma, tributária da discriminação social, não resta muito mais para dizer sobre o sucesso da dominação masculina. A discriminação foi imposta com tanto sucesso que convivemos pacatamente com ela e até se chega a fazer o seu elogio como se se tratasse da coisa mais natural do mundo.

No fundo, esta aparente normalidade é algo que nos acompanha há muito tempo. Só que agora arranjámos forma de nos convencermos de que a erradicação do problema está próxima.

Monday, June 26, 2006

Há coincidências que precisavam de algo mais que o acaso para as explicar. Através de um post do FNV, fico a saber que o Procurador-Geral mexicano responde pelo nome de Daniel Cabeza de Vaca.

Cabeza de Vaca

Álvar Núñez Cabeza de Vaca, conquistador espanhol do século XVI, naufragou ao largo da costa do actual estado do Texas em 1528. Juntamente com alguns companheiros de viagem, viveu os seis anos seguintes entre os índios dessa região, adoptando uma boa parte dos seus modos de vida. Tendo granjeado reconhecimento entre as populações, desempenha uma função de comerciante, deslocando-se da costa para o interior, e vice-versa. Mais ainda, os índios convencem-se dos seus poderes curativos e Cabeza de Vaca, não mais do que à custa de uma mistura de ritos tradicionais indígenas e Pais Nossos e Avés Marias, como ele mesmo refere, passa assim a exercer a função de xamã.

Movido pela vontade de encontrar os seus, e depois de uma quase inacreditavelmente longa caminhada de dois anos, alcança as terras do México, onde a conquista espanhola segue em ritmo elevado. Finalmente, o desejo de reencontrar os seus compatriotas e a possibilidade de voltar a pisar solo espanhol são uma realidade. Ainda regressará às Américas, não só como explorador, mas também como governador do Vice-Reino de Rio de la Plata. Aí incompatibiliza-se com os abusos cometidos sobre os índios e acaba destituído das suas funções.

A interessante história deste homem excede as peripécias das suas viagens. Cabeza de Vaca é um dos conquistadores espanhóis que decide relatar para a posteridade a sua visão das conquistas. É nesse campo que se torna mais notável. Natural de Espanha, acaba por encontrar e viver durante um largo período numa cultura completamente estranha ao mundo que até aí conheceu. Apesar do nível de integração cultural que alcança, nunca esquece a sua terra natal nem o desejo de a rever. Nos relatos sobre esses agitados anos, a utilização do "nós" vai balançando entre o lado dos espanhóis e o lado dos índios. Até que, por fim, o indeciso "nós" acaba substituído por um "eles" comum a ambos os lados.

Tendo vivido as duas culturas, não renegando explicitamente nenhuma delas, é como se Cabeza de Vaca, de forma paradoxal – ou talvez não –, deixasse de se conseguir incluir nos dois mundos que retrata. Para ele, perante a experiência da alteridade, já só resta a exterioridade.

Friday, June 23, 2006


Gustav Klimt, Die Jungfrau, 1913

Escolho este conjunto de jovens donzelas para, após as dúvidas lançadas de forma implícita sobre as capacidades de apreciação estética de Klimt, fazer justiça ao pintor.
Como se sabe, os critérios que definem a beleza variam com as épocas. Muito embora, com alguma maldade, possa haver quem se interrogue se alguma vez terá havido época com critérios que, de bom grado, acolhessem a senhora Adele Bloch-Bauer. Pior sorte terá tido Diego Velásquez, "forçado" a retratar inúmeras vezes a rainha Maria Luísa, mulher de Carlos IV de Espanha.

Para além destas considerações, trocando a estética pela ética, podemos ainda reformular a dúvida da Helena e, em vez de perguntarmos como se chega a uma situação financeira de ter 135 milhões de dólares para comprar um quadro, questionarmos antes como é que, num mundo com tanto dinheiro, ele continua a faltar a tanta gente para coisas tão essenciais. Penso que esta pergunta pode suscitar respostas muito mais interessantes. Nunca se deve menosprezar a criatividade e a racionalização do ser humano.

Thursday, June 22, 2006

Se bem percebi, o presidente de Timor-Leste pediu a demissão do primeiro-ministro em função de um programa de televisão australiano, acrescentando ele mesmo mais algumas acusações sobre Alkatiri. Independentemente dos erros que o primeiro-ministro e o partido que o apoia possam ter cometido, ou estejam a cometer, a confiança no discernimento político de Xanana Gusmão deixou de ser sustentável.

Há quem olhe para as bandeiras desfraldadas nas janelas, para as t-shirts de Portugal a passearem-se nas ruas, para os apoios que se multiplicam a cada golo e veja nisso um patriotismo renascido. Como se não fosse apenas, na sua grande maioria, a conhecidíssima tendência de fazer a festa ao lado dos que ganham.

Tuesday, June 20, 2006

Meses depois do último contacto, talvez mais de meio ano depois, um telefonema da imobiliária. As bases de dados são uma coisa fantástica. Só não sei quem é que se lembrou de pensar que podem ser travestidas de verdadeiro empenho.

135 milhões


Gustav Klimt, Adele Bloch-Bauer I, 1907

Friday, June 16, 2006

Assim sim. Trovoadas fortes e chuvadas curtas e intensas, por entre as quais, a espaços intermitentes, surge o sol e o calor. À nossa economia de país tropical vem, finalmente, juntar-se o clima correspondente.

Wednesday, June 14, 2006

A 14 de Junho de 1940, as Waffen SS fazem chegar o primeiro transporte de prisioneiros às imediações da localidade polaca de Oświęcim. A uma semana do fim da Primavera, tem início um longo Inverno que só terá fim em Janeiro de 1945, quando o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau for finalmente libertado pelo Exército Vermelho.

Estes dias de trabalho no meio da semana de descanso quebram muito o ritmo.

Monday, June 12, 2006

Alguém me pode explicar qual é a mais valia jornalística das entrevistas feitas àqueles senhores que saem dos estádios, cheios de cachecóis, bandeiras e pinturas faciais, e às adoráveis criancinhas de 4 anos que eles transportam às cavalitas? A sério, alguém que me explique isto. E se o argumento for que as pessoas gostam de ver essas entrevistas, então que me apresentem alguém assim, porque eu não conheço ninguém que não considere um absurdo o tempo que se perde nesses apontamentos.

Friday, June 09, 2006

Estou aqui a olhar para o relógio há uns bons vinte minutos e o no mostrador ainda só passaram uns quatro ou cinco.

Num registo recheado de intransigência, Pedro Sá, no Descrédito, conclui um post clamando por "uma política dura de segurança". E diz ainda: "quero ver os mesmos que me chamavam fascista por defender isto agora a dobrarem a língua depois de Ségolène Royal vir defender políticas neste sentido."

As políticas que Pedro Sá defende passam, entre outras preciosidades, por afirmar que "a segurança do povo é muito mais importante do que qualquer humanismo", que "os projectos de vida de cada um não podem ser mais importantes que a segurança de todos", que "a reintegração e a recuperação são duas ideias que têm rapidamente de ser eliminadas do sistema penal" e que se deve proceder à "eliminação de todas as condicionantes à acção da polícia quando em combate ao crime".

Nada do que está escrito nesse post pode ser considerado de esquerda e quase tudo pode mesmo ser considerado fascista. O esboço de "política de segurança" ali delineado está ferido por um totalitarismo securitário intolerável em qualquer sociedade democrática. Revela, como não podia deixar de ser, uma concepção hiper-musculada das instituições formais de controlo e uma desvalorização da pessoa em detrimento do colectivo.

Há ideias que constituem uma pequena abertura para a infiltração do ideal totalitário nas sociedades democráticas. As noções expostas no Descrédito estão muito para além disso. São uma porta escancarada. Só falta saber se o Pedro Sá não percebeu isso ou se assume até ao fim as consequências do seu pensamento político e social.

O facto de não ser possível discernir qualquer lógica ou sentido que presida a orientação do texto das lombadas dos livros editados em português não pode ser entendido de outra forma que não como mais um sintoma do atraso civilizacional deste país.

Wednesday, June 07, 2006

This is a men's world

Na questão das quotas, que não na da equidade, o João Tunes discorda de mim. Se partilhamos a vontade de ver o fim da discriminação sexual, discordamos nos instrumentos que possam permitir lá chegar. Seria muito bom, já o disse antes, que as quotas não fossem necessárias, que a igualdade surgisse por consenso social e não por imperativo legislativo. Mas não vivemos nesse mundo. A desigualdade e a discriminação existem e, a meu ver, torna-se necessário intervir rapidamente para debelar esse facto.

Um dos caminhos para uma participação mais activa das mulheres na política e nos cargos de liderança passa, como o João muito bem afirma, por uma divisão das tarefas familiares. Quando estas são partilhadas pelo casal, existe um equilíbrio de participação nos mais diversos campos em que cada membro se queira envolver. Da mesma forma, é sabido que existem traços culturais e sociais que alimentam e perpetuam a discriminação sexual, tanto no ambiente familiar como no ambiente profissional. Mas também é verdade que, hoje em dia, existem muito mais mulheres com preparação académica do que, por exemplo, há 30 anos. Contudo, o facto de termos mulheres qualificadas para funções de relevo não tem encontrado igual tradução no acesso efectivo a esses lugares. Se ainda se pode dizer – e pode – que as mulheres são social e culturalmente condicionadas a optar por determinadas áreas de actividade, também se pode afirmar que existem já amplos exemplos que rompem com esses condicionalismos, mas que, mesmo assim, não garantem uma participação em termos de igualdade.

Existe, ainda, um ponto que não consigo deixar de voltar a frisar. Continuo sem perceber por que é que não se há-de arranjar um número suficiente de mulheres interessadas em desempenhar cargos políticos. Tomemos como exemplo a constituição do governo. Dos dezasseis ministérios que compõem o actual executivo, apenas dois são liderados por mulheres. Se eu perguntar se não se arranjam mais seis mulheres com capacidades para o cargo estou a ser demagógico ou estou a colocar uma questão pertinente?

Admito que o que escrevi ontem sobre este assunto possa oferecer uma leitura mais crítica, tal como a que foi feita pelo João Tunes. Para continuar a granjear o crédito que ele tem a amabilidade de me conferir, acrescento algumas explicações. Quando digo que me sinto intrigado com aquela argumentação, não pretendo com isso afirmar que a generalize a todos os que são contra as quotas. Sei que ela existe, sei que já a ouvi tanto da boca de homens como da de mulheres, mas não sei se é um traço dominante ou característico da recusa das quotas (nem pretendo discutir isso). Do mesmo modo, não pretendo generalizar o julgamento de intenções que fiz. Penso que existe (ou que, pelo menos, é possível entrever) uma certa forma de pensar, a qual tentei identificar, embora conceda que a minha escolha de palavras para o fazer não tenha sido a mais adequada e permita uma leitura mais radical do que é, de facto, a minha posição.

Ainda assim, se espero ter retirado o eventual radicalismo que pudesse estar associado à minha argumentação, não pretendo alterar as suas linhas condutoras. Continuo sem perceber por que razão se há-de considerar a introdução de quotas como uma medida protectora, ao invés de a considerar, no essencial, de uma justiça inadiável. Ou que não se prefira este mal menor, por oposição a aguardar uma mudança de mentalidades que tarda em chegar.

Tuesday, June 06, 2006

Lembro-me perfeitamente de, quando criança, percorrer os stands da Feira do Livro ao lado da minha mãe, escolher uns 4 ou 5 livros para ela mos comprar e, depois, sentar-me ao seu lado nos relvados do Parque, abrigados pela sombra de uma árvore, comendo um gelado, desfolhando as aquisições e decidindo com qual delas começar a leitura. É das mais simples, nítidas e felizes memórias que guardo da infância.

Existe um imbróglio a envolver o Belenenses e o Gil Vicente. Aparentemente, o clube de Barcelos incorre numa sanção que o pode afastar da Primeira Liga, a qual se fica a dever ao facto de, à revelia da Liga de Clubes, da Federação Portuguesa de Futebol e da FIFA, ter recorrido aos tribunais civis para resolver uma questão desportiva. Independentemente das razões que assistam ao clube na sua demanda, qualquer regulamento que impeça o recurso aos tribunais civis, ou o condicione à autorização de terceiros, é uma aberração.

Um dos aspectos que mais intriga no discurso dos que são contra a introdução de quotas para a igualdade de género é a invocação de uma putativa injustiça de se assistir à inclusão de mulheres que não estão lá pelo seu valor mas antes pela necessidade imperiosa de preencher vagas. Que tal recurso, afirmam, chega a ser vexatório para a condição dessas mesmas mulheres.

Por qualquer estranha razão, os apologistas desta visão não concebem que seja possível encontrar um número suficiente de mulheres competentes para preencher as ditas quotas. Partem imediatamente do princípio de que as quotas retiram o lugar a homens com basta competência para o lugar, para os trocar por mulheres impreparadas, sem outra utilidade que não a instrumentalização numérica. Evidentemente, para tal nunca se chega a demonstrar o superior mérito dos que actualmente enchem as listas partidárias, nem, concomitantemente, o demérito das que se encontram de fora.

O facto de, para alguns, não ser concebível que para cada dois lugares se possa encontrar um homem e uma mulher igualmente preparados para os ocupar é um dos melhores indicadores da mentalidade que reina e bastante revelador da necessidade quotas para corrigir este desvio discriminatório.

Monday, June 05, 2006

O CDS-PP apresentou um projecto de lei que pretende baixar a idade de inimputabilidade de menores. Esta situa-se, actualmente, nos 16 anos, sendo que o CDS-PP propõe os 14 anos.
Deixemos de lado as considerações sobre a idade a partir da qual se deve considerar um menor imputável, não porque seja um assunto desprovido de interesse, mas sim porque existe um outro aspecto que se mostra muito relevante e que é a fundamentação do projecto.

O que sobressai da exposição de motivos do projecto de lei do CDS-PP é uma ideologia muito definida, palpável na lista de justificações da criminalidade juvenil e nas soluções escolhidas. Vários motivos são apontados pelo grupo parlamentar do CDS-PP, alguns deles, seguramente, com propriedade. Mas, perante a identificação de causas que se prendem, aos olhos dos deputados do CDS-PP, com “sociedades de baixa qualidade de vida nas periferias urbanas; políticas de emprego que não conseguem vencer a dificuldade em encontrar o primeiro posto de trabalho; sistemas educativos em que a instrução para o civismo é deficitária e a autoridade do professor não está defendida; a progressão galopante do «ciclo da toxicodependência», cuja criminalidade associada é manifesta; a inexistência de políticas familiares que devolvam aos pais tempo disponível para os seus filhos, respectiva educação e acompanhamento, e que são responsáveis pelo relativo abandono afectivo dos menores em tenra idade”, não deixa de ser curioso que surja uma iniciativa legislativa que aponta directamente à idade de imputabilidade, ao invés de se assistir a iniciativas direccionadas a montante, combatendo as causas sociais referidas.

O que transparece, então, apesar do discurso envolvente, é a preferência por uma deriva repressiva e autoritária. Se quem avança com um projecto destes conhece minimamente a realidade das instituições de reclusão, sejam elas para menores de idade ou para adultos, deve saber que estas funcionam mais como instrumento de perpetuação da condição de exclusão, de marginalidade e de delinquência do que de outra coisa qualquer. Embora se possa discutir a justiça de se reduzir o limite etário da inimputabilidade, discussão onde os especialistas de desenvolvimento cognitivo terão uma palavra importante a dizer, custa a perceber que esse seja um caminho prioritário em detrimento de outro género de intervenções.

É sobretudo interessante verificar como a “baixa qualidade de vida nas periferias urbanas” surge completamente descontextualizada da realidade social a que se reporta, como se, para além de realidade factual, constituísse uma inevitabilidade social que não tem correspondência com as políticas económicas e sociais de um país ou de um município. Por outro lado, as “políticas de emprego que não conseguem vencer a dificuldade em encontrar o primeiro posto de trabalho”, assumem uma faceta paradoxal neste contexto em que se identifica a tipificação etária como indo dos 13 aos 15 anos, portanto, no limiar ou abaixo da idade activa, ou quando se sabe que os comportamentos delinquentes são muitas vezes frequentes em idades inferiores aos 10 anos.

Nunca a desigualdade social é referida como motivo de criminalidade, nem o são os indiscutíveis traços culturais de consumo e de materialismo das sociedades ocidentais. Tal como Ulrich Beck referiu, a propósito dos distúrbios vividos em cidades francesas no ano passado, toda essa conflitualidade e actos de delinquência não radica num défice de integração, mas antes no sucesso da assimilação desses valores dominantes e no desfasamento de oportunidades para aceder a uma participação na criação e distribuição de riqueza da sociedade.

Seria importante recordar, a este propósito, que em Portugal o fosso entre ricos e pobres não cessa de aumentar, que o poder de compra das classes médias e baixas diminui consecutivamente de ano para ano, que o salário mínimo é de 385,90€ e que um número considerável de pessoas se vê obrigada a recorrer ao multiemprego para assegurar um limiar mínimo de condições de vida, o que acarreta consequências lógicas ao nível de tempo disponível para si e para a família. Muito mais relevante, então, seria um debate, não sobre a idade da imputabilidade, mas sobre a contínua aposta na desqualificação dos trabalhadores e em políticas de salários baixos, a falta de preparação e de competitividade das chefias e dos empresários, a incapacidade crónica de fazer chegar a ajuda a quem mais dela precisa, o afastamento de um número cada vez maior de pessoas dos centros de decisão e de acesso à riqueza. Uma discussão, no fundo, sobre todo um modelo de sociedade que se tem vindo a implementar com os resultados que se conhece.


Georges Braque, Marina L'Estaque, 1906

Friday, June 02, 2006

Não sei o que é que as pessoas têm contra o spam. Eu farto-me de ganhar coisas a que não concorri.

Thursday, June 01, 2006

Num dos seus filmes (O Escorpião Jade), alguém atira à personagem de Woody Allen que existe um nome para as pessoas que acreditam que toda a gente está a conspirar contra elas, ao que este responde "Eu sei, perspicaz."
Pode fazer-se outro raciocínio, de certa forma análogo, para estes casos em que toda a gente aponta o dedo acusador no mesmo sentido. Quando todos vêem exactamente a mesma coisa, é bastante provável que exista algo mais, para além do óbvio, que lhes está a escapar. Aliás, a unanimidade é quase sempre um excelente motivo para gerar uma ajuizada e cautelosa reserva.

No actual contexto de políticas organizacionais, as avaliações de desempenho são dadas como um valor seguro. Mais ainda se os serviços em causa cumprem uma das funções primordiais de qualquer sociedade como é a da educação. O problema das avaliações reside, mais que tudo, nos critérios e nos instrumentos de avaliação. No fundo, discernir com rigor quem avalia, o que avalia e como avalia.

Pedir que os pais avaliem o desempenho dos professores é uma ideia que reúne as suas vantagens, se for devidamente enquadrada. Não faltam exemplos de teorias sobre o sistema educativo que defendem a participação dos pais na vida escolar e chegam mesmo a existir orientações legislativas nesse sentido. Porém, esta, como tantas outras questões, não se resolve por decreto. Os pais não se envolvem no meio escolar apenas porque o Ministério da Educação assim o pretende. E sem este envolvimento prévio, não é possível esperar que a sua participação num processo de avaliação garanta qualquer resultado fiável. Assim, apesar de a ideia não ser de todo descabida, sem a garantia do cumprimento de alguns pré-requisitos indispensáveis, apenas estão a ser dados passos num terreno que não oferece bases de sustentação adequadas.

Garantir um envolvimento prévio mais activo dos pais na realidade escolar seria um caminho mais seguro para alcançar resultados que possam ser reintroduzidos no sistema de ensino para o melhorar. Não só tendo em vista uma hipotética avaliação do desempenho dos professores por parte daqueles, mas, sobretudo, para transformar as escolas em locais de partilha de conhecimento e informação entre os agentes envolvidos na socialização das crianças. Mas convém ter presente que essa participação e essa partilha dependem tanto dos próprios pais como das diversas condições que lhes são oferecidas para aceder a essa participação, sendo, por isso, mais do que um problema exclusivo do sistema educativo, um problema da nossa sociedade e dos seus traços sociais, culturais e económicos dominantes.

O sistema educativo merece uma avaliação séria e rigorosa, o que se apresenta como uma tarefa bastante complexa. Tal avaliação tem de equacionar o ensino no seu todo, como sistema continuado e projecto estruturante, nas suas diversas partes, como subsistemas com particularidades próprias, e, finalmente, em tudo o que diga respeito aos seus agentes, como realidade última da operacionalização das políticas de ensino. Avaliar uma das componentes sem considerar as restantes tem tanto de injusto como de perigoso. Dessa visão parcial, e forçosamente redutora, retirar-se-ão conclusões também elas parciais e redutoras, que não podem ditar mais do que medidas que, em rigor, ninguém poderá garantir que correspondem às reais necessidades do ensino.

A pergunta a fazer é: onde é que se podem depositar as contribuições para que a Madeira, finalmente, alcance a desejada independência de Portugal?

Um bom começo

Atender um telefonema, logo pela manhã, por ser dia da criança.

258ª lei da blogosfera:

A blogosfera gosta de jacarandás.

Um dia inteiro sem acesso ao blogue. E logo quando até tinha o que publicar...