Tuesday, October 31, 2006

""O que é que quer levar hoje?", perguntou ao mesmo tempo que esfregava as mãos. "Uma embalagem de tabaco para cachimbo? Ou prefere uma lata?"
(Era evidente que me considerava um cliente. Muitas vezes atendia o telefone na enfermaria e dizia: "Tabacaria Thompson".)
"Oh, Sr. Thompson", exclamei, "quem é que pensa que eu sou?"
"Meu Deus, há muito pouca claridade aqui, pensei que fosse um freguês. Se não é o meu amigo Tom Pitkins… Eu e Tom (confidenciou em voz baixa à enfermeira) íamos sempre juntos às corridas de cavalos."
"Enganou-se outra vez."
"Pois claro!", exclamou sem se perturbar. "Porque é que o Tom estaria de bata branca? É o Hymie do talho aqui do lado. Hoje não tens manchas de sangue na bata. O negócio vai mal? Não te preocupes, há-de parecer que saíste de um matadouro antes da semana acabar!"
Eu próprio já me estava a sentir arrastado neste redemoinho de identidades e, atrapalhado, enrolei os dedos em volta do estetoscópio que trazia no pescoço.
"Um estetoscópio!", explodiu. "Estavas a fingir que eras o Hymie! Vocês os mecânicos parece que andam para aí a imitar médicos com essas batas brancas e esses estetoscópios – como se precisassem de um estetoscópio para ouvirem um carro a trabalhar! És o Manners, o meu amigo da bomba de gasolina ao fundo da rua. Entra, vens buscar a tua encomenda?…"
William Thompson esfregou de novo as mãos, um gesto típico de comerciante, e olhou em volta à procura do balcão. Como não o encontrou, olhou para mim admirado.
"Onde é que estou?", perguntou subitamente assustado. "Pensei que estava na minha loja. Não tinha a cabeça aqui. O sotor quer que eu tire a camisa para me auscultar como de costume?"
"Não, eu não sou o seu médico do costume."
"Realmente não é. Percebi logo. Não é o meu médico habitual, o que me costuma auscultar. Meu Deus, tem cá uma barba! Parece o Freud. Será que estou louco, enlouqueci?"
"Não, não está louco. Tem apenas um pequeno problema de memória – dificuldade para se lembrar das coisas, para reconhecer pessoas."
"Realmente a memória tem-me pregado umas partidas", admitiu. "Às vezes engano-me, confundo as pessoas… então o que é que leva? A lata ou a embalagem?"

Oliver Sacks, O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, Relógio d’Água

Saturday, October 28, 2006

Embora a outro nível, mas de certa forma relacionado com o post anterior, vale muito a pena ler este post no ...bl-g- -x-st-, assim como o texto da autoria de Pedro Magalhães lá referido.
Porque quem diz sondagens pode muito bem dizer resultados eleitorais.

Friday, October 27, 2006

As campanhas eleitorais estão recheadas de promessas. Quase se pode arriscar dizer que são constituídas, essencialmente, pela divulgação de promessas. Compromissos que se assume levar a cabo no futuro, caso se obtenha o poder. As promessas só são boas ou más consoante nos situemos ideologicamente perante elas. Mesmo que se caia no lugar-comum de pretender, de uma forma genérica, um desenvolvimento económico e social, interessa saber quais os indicadores escolhidos para medir esse desenvolvimento e que instrumentos serão privilegiados para o alcançar. Interessa igualmente saber o que será preterido, uma vez que os recursos são limitados e é inevitável que as escolhas feitas obriguem a deixar algo para trás.

É muito mais razoável admitir que o eleitorado vota maioritariamente atraído por promessas específicas do que por programas eleitorais que desconhece. Vota também como forma de protesto e com alguma (pouca) memória política. Se determinadas medidas, como as SCUT ou a Ota, são boas ou más leva-nos para um campo de discussão que eclipsa algo bastante importante. Independentemente do que se possa pensar sobre a Ota ou sobre as SCUT, sobressai do post no Bloguítica a questão de se saber o que estamos dispostos a considerar como decisão soberana do eleitorado. Sem demagogias, sem oportunismos, se admitirmos que o eleitorado vota em promessas, podemos discordar das medidas específicas, mas causa uma certa perplexidade que se peça aplausos para que um governo apoiado por uma maioria absoluta abra mão das suas promessas para passar a cumprir o plano eleitoral de terceiros.

Dito de outra forma, embora se possam discutir as vantagens ou inconvenientes de projectos específicos, como avançar com a Ota ou manter as SCUT, existe uma reflexão para efectuar quanto à forma como se conduz a política de uma forma mais geral. Até que ponto se respeita e merecem respeito os resultados eleitorais? Qual a força da relação, e consequente legitimidade, entre estes resultados e a aprovação das promessas, ou mesmo dos programas eleitorais?

Respondendo a estas interrogações pode apurar-se o estado de amadurecimento da nossa democracia, quer no que diz respeito a eleitores, quer no que diz respeito a eleitos. Pode também definir-se o que é aceitável em democracia. Isto porque, se é verdade que o eleitorado pode votar sem a total consciência das consequências do seu voto (a qual, de resto, é utópica), também se sabe no que resultam os projectos que almejam gerir uma sociedade a partir de uma elite esclarecida. Esta fraqueza da democracia, a de confiar no eleitorado, é, afinal, uma das suas maiores forças.

Wednesday, October 25, 2006

Quando houver novo referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez hei-de votar e gostaria que mais portugueses fizessem o mesmo. Hei-de votar favoravelmente à interrupção voluntária da gravidez e também gostaria que mais portugueses o fizessem. Apesar de defender que este assunto poderia e deveria resolver-se na AR, gostaria que o novo referendo tivesse carácter vinculativo e que o resultado fosse uma vitória do "sim".
Não me agrada o aborto como solução, mas também não concordo que se cruze os braços como se não existisse actualmente um problema sério de saúde pública. Dois erros não se corrigem mutuamente. Hão-de ser sempre dois erros.
Para que conste, também acredito que medidas como a educação sexual nas escolas e o planeamento familiar nos serviços de saúde, assim como melhores qualificações e melhor qualidade de vida para as populações fariam mais pela quebra de interrupções voluntárias de gravidez do que todas as leis que se possam engendrar.
Igualmente para que conste, não pretendo voltar a falar neste assunto muito mais vezes.

Pode compreender-se que haja quem goste de insultar de cara tapada. Não se aceita, não se tolera, mas pode compreender-se: chama-se cobardia. Que se queira apresentar factos com a cara tapada também se compreende. Um facto é verificável e a sua verificação é independente da pessoa que o apresenta.

Não me provocam qualquer impressão os blogues anónimos. O anonimato, em si, não me parece algo condenável. É o uso que se lhe dá que merece análise crítica e reparos, quando for caso disso. Leio blogues escritos anonimamente sem qualquer distinção ou reserva em relação aos blogues assinados que também leio. O escrutínio que faço para incluir um blogue na minha lista de leituras tem sobretudo a ver com a qualidade do que é escrito, com o enriquecimento que julgo obter em cada visita e em cada leitura. O achincalhamento e o insulto não enriquecem ninguém, muito pelo contrário, e a pobreza que deles emana diz muito mais de quem insulta do que de quem é insultado.

Surgiu agora um blogue que acusa e tenta demonstrar que Miguel Sousa Tavares plagiou o seu bem sucedido romance "Equador". Devo confessar que li o "Equador", tal como devo confessar que já visitei o blogue em causa, da mesma forma que cheguei a visitar o célebre blogue que espalhava insinuações para todos os pontos cardeais no período mais fervilhante do processo Casa Pia. Agora, tal como na antes, esses blogues não me merecem publicidade directa, muito menos uma hiperligação. É certo que não posso evitar um certo desconforto perante a alegação de que um livro, que ainda por cima li, pode ter sido plagiado. Mas, de certa forma, esse desconforto não é maior do que aquele que me assola quando me deparo com um blogue criado única e exclusivamente para denunciar tal situação e escrito ao abrigo do anonimato. Ainda que, pelo menos para já, deixando de lado o meio escolhido, por alguma razão – pela seriedade das implicações, por decoro, por dignidade – julgo que, neste caso, se trata de algo que se deve fazer assumindo a responsabilidade de dar o nome. Caso contrário, por estas e por outras razões, continuará a ser fácil confundir o anonimato com o insulto anónimo e a desconfiar dos blogues como meios de opinião valiosos.

Sunday, October 22, 2006

Wednesday, October 18, 2006


Henri Matisse, A Alegria de Viver, 1906

Friday, October 13, 2006

Cuidadinho

A Portugal Telecom anda a fazer uma publicidade engraçadita a anunciar chamadas grátis em horário nocturno, sem mensalidades e sem custos de adesão. Quem não achou muita piada foi a ANACOM, que resolveu suspender com efeitos imediatos o tarifário, apontando sérias reservas de natureza concorrencial. Com efeito, começa a haver um número crescente de operadores fixos – a chamada concorrência – mas isso não tem que significar necessariamente que se chegue ao extremo de andar a baixar os preços ou de lançar ofertas atractivas que beneficiam os clientes. Se assim fosse, daqui a pouco era o mesmo no sector dos operadores móveis, nos operadores de serviços de Internet ou mesmo nos combustíveis, e sabe-se lá onde é que isto poderia terminar. Qualquer dia as pessoas, com tantas vantagens, começavam a chegar ao fim do mês com mais dinheiro na carteira para gastar noutras coisas. Ou ainda se punham para aí a poupar e deixavam de recorrer tanto aos créditos, o que havia de repercutir-se no sector financeiro. E se o sector das actividades financeiras deixa de apresentar os lucros que apresenta todos os anos, quem é que apresentava lucros neste país? Já pensaram nisto? Deixem-se de ilusões e vamos lá a pagar as chamadinhas telefónicas à noite. Ou querem ver a retoma adiada mais uma vez?

Thursday, October 05, 2006

Começo a acreditar que o Pedro Arroja não passa de um alter-ego do João Miranda.

Qualquer pessoa medianamente informada sabe que o capitalismo visa uma maximização dos lucros. Ora, como a melhoria das condições dos trabalhadores implica uma concessão de benefícios e regalias – como, por exemplo, dias de descanso semanais, férias pagas, subsídios de alimentação, tempos de pausa na jornada de trabalho, melhores salários – e como estes implicam uma despesa efectiva para as empresas, não se percebe muito bem como é que aumentar os custos é compatível com a maximização dos lucros.
Sendo a premissa do capitalismo a maximização do lucro, a sua consequência natural, se este funcionar correctamente, é a criação de riqueza para os investidores. Ponto final.

Claro, claro...

"Apesar dos sindicatos terem passado este período a fazer reivindicações que depois se concretizaram, a verdade é que elas não se concretizaram porque os sindicatos reivindicaram mas porque a melhoria das condições dos trabalhadores é a consequência natural do sistema capitalista."

Assim sendo, não há por que temer os sindicatos: os seus interesses são coincidentes com a natureza do sistema capitalista.

Aliás, no que diz respeito a erro magistrais, convém recordar que, em Espanha, acabou de se realizar a primeira adopção de uma criança por um casal homossexual. É o fim da civilização como a conhecemos. A decadência e a frouxidão, já patenteadas na falta de empenho em meter na ordem Afonso Henriques, estão a tomar conta do país vizinho. O colapso económico, social e político está iminente.
Não pode tardar…
Está aí mesmo à porta…
Any minute now…

No centro histórico de Zamora, onde se assinou o Tratado homónimo que reconheceu a independência de Portugal, situa-se uma rua que dá pelo nome de Calle del Magistral Error. Ainda não consegui confirmar se uma coisa tem a ver com a outra, mas, até que me provem o contrário, vou continuar a pensar que sim.

Dizer que Correia de Campos tem maior "tendência para falar de mais e para se colocar em apuros" do que, por exemplo, Manuel Pinho, é perfeitamente peregrino.

Este post do Bloguítica tem uma dose de ingenuidade considerável e bastante invulgar no Paulo Gorjão. Pode não se concordar com as ideias de Correia de Campos para a Saúde, mas não se pode negar que o actual Ministro é um dos maiores conhecedores desse sector no país. Não se poderá dizer exactamente o mesmo sobre Jorge Coelho. Aliás, Jorge Coelho é, e tem sido desde há muito tempo, o homem do aparelho, a eminência (pouco) parda do PS.

Encerrar serviços nunca é uma medida capaz de gerar muitas simpatias junto das populações mais directamente afectadas por esse encerramento. Os autarcas sabem interpretar esse sentimento. Mais, sabem que os seus municípios não perdem apenas simpatias políticas. Perdem capacidade de atracção ou de manutenção de habitantes. É natural que estes factos gerem desagrado e a pessoa ideal a quem o manifestar, dentro do PS, é Jorge Coelho.

Encontra-se em discussão pública uma proposta para alterar o Serviço de Urgências. Segundo os critérios da comissão encarregue de elaborar a proposta, o novo modelo racionaliza os recursos existentes e estabelece valores de tempo de acesso a um ponto do Serviço de Urgência mais baixos, aproximando-se dos valores de referência internacionais.

Contudo, as quase 40 páginas da proposta conseguem não referir uma única vez os tempos de espera médios em cada Serviço de Urgência. Ou seja, prevê-se quanto tempo levam os doentes a chegar ao serviço, mas não se menciona quanto tempo esperam para ser efectivamente atendidos. Como é bom de ver, prestar atenção a uns e não a outros é completamente desprovido do mais básico bom senso.

Por outro lado, ao afirmar-se a racionalização dos recursos como um dos objectivos prioritários, parece estranho, no mínimo, que não se refiram as implicações económico-financeiras desta proposta. De facto, parece existir uma preocupação em depurar a proposta de tudo o que a possa apresentar como uma medida de carácter economicista. A ausência destas referências é tão notória que acaba por suscitar maior curiosidade, e dúvida, do que se elas lá constassem.

Monday, October 02, 2006

À espera

Após quase duas horas sem a médica aparecer, a sala de espera do Centro de Saúde começou a impacientar-se. Os comentários do costume subiram de tom progressivamente: “que era inadmissível, que era uma falta de respeito, que é sempre a mesma coisa, que a culpa é dos sindicatos, que é do governo, etc.”. Pelo meio não faltou quem assegurasse que o atraso se devia ao facto de os utentes do Centro de Saúde estarem, naquele preciso momento, a ser preteridos pelos utentes do consultório particular que a senhora doutora mantinha a poucos quarteirões de distância. Foi nesse momento que uma das pacientes mais críticas desabafou: “Se fossemos nós fazíamos o mesmo, não é?”.

Se a médica estava atrasada por se encontrar no consultório particular quando devia estar no Centro de Saúde ou se houve algum lamentável imprevisto não se sabe ao certo. Se foi pelo primeiro motivo, o seu profissionalismo está muito aquém do que é de esperar, sobretudo num profissional de saúde, devido às inerências específicas deste meio. Se for este o caso, para além do mau profissionalismo demonstrado, fica por saber que tipo de consequências acarreta este comportamento, se é que acarreta alguma consequência. Fica por saber, portanto, que mecanismos de responsabilização existem e se são efectivamente postos em prática, ou se tudo passa impune.

Mas o que é, talvez, o ponto mais interessante deste pequeno episódio é aquele incrível comentário feito por uma das utentes na sala de espera. Um comentário daqueles muda completamento a perspectiva para compreender o que se passou naquela tarde. A falta perante um compromisso de trabalho é mais do que a ausência de escrúpulos de uma pessoa e é mais do que a incapacidade de punir devidamente esses actos. Este caso mostra que a irresponsabilidade e a desresponsabilização alastram a todos os vértices do sistema, incluindo os seus utentes.

Maus profissionais há um pouco por todo o lado, em todas as profissões. Há-de continuar a ser assim, embora se possa desejar, com toda a legitimidade, que essa realidade venha a diminuir. Mas aqui há mais do que maus profissionais. Há, sobretudo, um problema generalizado de cultura cívica. A mulher da sala de espera é um exemplo de uma forma de estar que compactua com o estado das coisas, com o desrespeito pelos direitos dos outros e com os aproveitamentos ilícitos. Este tipo de pessoas não se indigna quando estão a ser cometidas injustiças. Indigna-se quando estas os afectam directamente. E, no seu íntimo, lamentam não ter a oportunidade de poder fazer o mesmo.

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Houve também quem tenha dito que se toda a gente reclamasse, as coisas não se passariam assim. O livro de reclamações, que todos os serviços públicos estão obrigados a disponibilizar, continha, até àquela data, apenas três reclamações. Depois daquela tarde passou a contar com mais uma, mas não graças a nenhuma das pessoas que se mostravam aparentemente tão indignadas. Nem mesmo àquela que achava que se todos reclamassem, as coisas seriam diferentes.

Sunday, October 01, 2006

Existe a identidade social desacreditável e existe a identidade social desacreditada. E, depois, existe o tapar o Sol com a peneira.