Quase quatro séculos antes de Oliver Sacks descrever o problema de William Thompson, o pintor Caravaggio causava escândalo um pouco por toda a Itália. O seu enorme talento granjeou a atenção e protecção de alguns nomes influentes do seu tempo. Através deles, chegaram também importantes encomendas que o pintor realizou colocando nelas tanto da sua vocação para a pintura como do seu espírito provocador e inconformista. Caravaggio pintou naturezas mortas onde se destacavam os frutos podres e as folhas murchas, santos rodeados de anjos em poses demasiado terrenas, um nobre acompanhado de um pajem de ar suspeitosamente provocador, uma Nossa Senhora de saias arregaçadas como uma lavadeira, outra usando como modelo uma conhecida meretriz ou ainda uma morte da Virgem recorrendo ao cadáver de uma cortesã retirado do rio. Foram poucas, quase nenhumas, as suas telas que viram a primeira versão ser aceite sem polémica.
Não faltaram oportunidades e conhecimentos a Caravaggio para o afastar de vida de excessos e quezílias em que sempre se envolveu. De cada vez que lhe foi dada nova oportunidade, a sua reacção foi a de ir ao encontro das provocações, polémicas e problemas com a autoridade que pautaram a sua curta existência. O seu último anseio, o perdão do Papa Sisto V, chegou demasiado tarde e o édito que anuncia a sua morte – de resto, em circunstâncias pouco claras – vem oficialmente colocar um fim ao seu percurso errático.
Caravaggio e William Thompson, o homem cuja síndrome de Korsakov o impedia de reter algo na memória por mais do que alguns breves segundos, têm em comum uma fuga. O primeiro fugia da desorientação e da ausência de sentido provocadas pela sua amnésia; o segundo talvez fugisse de uma posição conformada na qual nunca se sentiu bem. Os dois fugiam, no fundo, de um cenário em que não conseguiam reconhecer-se. Os seus exemplos servem para recordar a força da identidade pessoal e os insondáveis recursos que possuímos para não a perder. Quer seja à custa de uma fantasia permanente, quer seja à custa de jogar com a própria vida.
Friday, November 03, 2006
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