Tão facilmente como outra pessoa qualquer, reconheço que um trabalhador incompatibilizar-se abertamente com o seu empregador exige alguma coragem e um certo desapego à segurança do seu emprego. Neste caso, os jornalistas vivem uma realidade ainda mais restritiva. Fruto da concentração na comunicação social, ao se incompatibilizarem com um órgão de comunicação social estão a incompatibilizar-se com todo um grupo de órgãos de comunicação social, aumentando drasticamente as dificuldades de encontrar um novo emprego.
Colocar em risco, assim, o presente e futuro profissional em nome de algo maior como os princípios éticos e deontológicos e a capacidade de manter a coluna direita é algo sempre admirável. Admira-se, precisamente, por implicar custos muitas vezes elevados e duradouros. E é por essas razões que me custa apontar o dedo acusador aos que são coactados a agir de determinada forma que contraria os seus valores. A este propósito, recordo as críticas que foram lançadas a Xanana Gusmão quando, após ter sido preso pelas forças militares da Indonésia, surgiu num depoimento a retratar-se da sua actividade de guerrilha pela independência de Timor. Recordo também a resolução de Nelson Mandela, que recusou a liberdade que lhe ofereciam se aceitasse prescindir da sua luta contra o apartheid na África do Sul. Quantos dos que criticam sem pejo teriam sido capazes de resistir à tortura e às ameaças de morte ou de aceitar uma vida inteira atrás das paredes de uma prisão em nome dos princípios que defendem?
Tendo isto presente, ainda assim, não deixa de ser com muitas reservas que leio um jornalista a assumir-se vítima de manipulação, sendo que não aponta um caso isolado – o que seria perfeitamente compreensível e até desejável –, mas antes uma prática repetida nas redacções pela pressão das audiências ou das direcções. Da mesma forma, custa-me a aceitar que se defenda como único valor noticioso acrescentado do jornalismo de imprensa sobre o jornalismo de televisão a capacidade de antecipação, ou que o respeito pelos leitores passe, sobretudo, pela vontade de lhes dar novidades.
As reservas em relação ao primeiro caso prendem-se com o aparente à-vontade com que se assume a manipulação de que são alvos os jornalistas. Fica explícito que quem o escreve não se sente confortável com a situação, mas a própria forma como o relata, mais próxima do desabafo do que da denúncia, revela uma falta de constrangimento que deixa um travo de perplexidade a quem lê. Alguém imagina o que seria se um director-geral de um qualquer serviço público ou um qualquer executivo de uma qualquer empresa de referência na economia nacional viessem a público reconhecer abertamente que cediam a manipulações dos seus superiores ou que colocavam em segundo plano a ética dos seus desempenhos em função dos resultados que pudessem vir a ser alcançados? A classe dos jornalistas, e bem, seria a primeira a chamar a atenção para o caso, embora, a este respeito, não faltem também exemplos de silêncios incompreensíveis, como quando Carmona Rodrigues resolveu, sem assombro, divulgar a troca de lugares de nomeação política por apoios eleitorais na CML.
O segundo caso diz respeito a uma visão do jornalismo de imprensa que não incorpora como mais valia, sobretudo em relação à televisão, uma capacidade de tratar os assuntos que exceda a simples novidade. Quando a informação na televisão, pelo menos a que tem audiências mais significativas, está praticamente acorrentada a apontamentos de um ou dois minutos, os jornais possuem a enorme vantagem de poderem tratar os temas com um grau de profundidade muito superior. Mais ainda quando a interacção do leitor com o jornal lhe permite escolher os momentos de leitura e construir o seu percurso pelos diferentes textos da notícia, algo que está, como é óbvio, completamente fora de questão num telejornal. O jornalismo de imprensa pode e deve ser muito mais do que uma mera antecipação do que vai passar na televisão ao início da noite.
O enfoque não deve restringir-se apenas a dar ao leitor o que ele não sabe, mas a dar-lhe a possibilidade de saber mais do que já sabe e de aceder a essa informação sabendo que as tentativas de manipulação dos conteúdos foram anuladas ou reduzidas a um mínimo residual com o qual se terá sempre de lidar. Não se exige uma estirpe nova de heróis nem uma acção hiper-moralizadora no desempenho da profissão. Mas pode pedir-se uma abertura de espírito para trocar mais vezes a informação que é novidade pela informação que é relevante, a aceitação passiva pela capacidade crítica. Será com toda a certeza muito difícil lutar sozinho contra um sistema instalado e a funcionar a toda a velocidade, mas se conseguirem juntar-se esforços de classe que ultrapassem o interesse corporativo, talvez seja possível alterar o panorama da produção de notícias que vigora actualmente. Aí está uma notícia que daria gosto ler.
Thursday, April 27, 2006
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