Quatro razões para não ir
O Nuno Guerreiro tem vindo a desafiar os seus leitores a deslocarem-se ao Rossio, dia 19 de Abril, para acenderem uma vela em memória das vítimas do massacre de 1506. O Lutz, no Quase em Português, pergunta-se pelos argumentos dos que se incomodam com esta proposta. Conto-me entre esse número e acredito, tal como o Lutz, que uma discussão aberta pode ser mais benéfica do que umas centenas ou uns milhares de pessoas no Rossio.
Assim, os quatro pontos que mais me incomodam são os seguintes:
1 - A proposta do Nuno Guerreiro surge desprovida de outra contextualização que não seja a evocação do acontecimento e, quando assim é, existem certamente outras contextualizações implícitas que não estão a ser divulgadas. Falta, como o Lutz muito bem notou, saber "em nome de quem, dirigido a quem e para quê".
2 - De forma concomitante, evocar a história sem procurar compreendê-la é uma acção de pouca utilidade. Em 1506 foram mortos milhares de judeus em Lisboa, o que é um facto iniludível. Mas esse facto deve ser enquadrado no contexto social da época. As mortes que se registaram em Lisboa há 500 anos não resultaram da pura maldade. Hão-de ter correspondido a quadros mentais, sociais e culturais devidamente inscritos nessa época histórica. Eventualmente, poderão ter correspondido até a interesses políticos e económicos. Na ausência de tal enquadramento, evocar a História traz poucos ou nenhuns benefícios do ponto de vista do conhecimento da mesma.
3 - Porque se trata de um "desafio". O uso do termo parece-me, de certa forma, uma manipulação. Por que é que me hei-de sentir desafiado a ir ao Rossio dia 19 de Abril? O Nuno Guerreiro não nos "convoca" nem nos "pede" para irmos ao Rossio. "Desafia-nos", e a utilização deste termo não me parece neutra. Um desafio pede que estejamos à sua altura. Eventualmente, que nos superemos. Nesta forma de pôr as coisas não se solicita uma aquiescência. Mais do que isso, solicita-se uma elevação moral. De "desafio" passamos facilmente a "dever" ou, no seu incumprimento, a "culpabilização". Em última análise, o apelo do Nuno Guerreiro remete mais para o domínio dos afectos do que para o domínio dos valores e da razão.
4 - Para finalizar, porque me faz sentir arregimentado, senão mesmo instrumentalizado. É uma consequência inevitável dos métodos utilizados neste "desafio". A iniciativa carece de justificações e de uma linguagem mais transparente. Sobra, por isso, bastante espaço para interpretações menos positivas sobre o intuito, sobre as finalidades não declaradas, de congregar tanta gente ao serviço não se sabe bem do quê.
|