O processo
Na sequência dos posts que o Lutz Bruckelmann dedicou ao Museu de Berlim, ao lado dos comentadores mais habituais no Quase em Português surgiram uma série de outros comentários que se afastam radicalmente do nível habitual para aqueles lados. Esses comentários oscilavam entre o proselitismo e o ressentimento, tendo em comum a recusa dos números geralmente avançados na sinistra contabilidade dos mortos no Holocausto.
A questão dos números, embora não seja, de todo, a mais importante, não pode ser simplesmente ignorada. Costuma dizer-se que um morto é uma tragédia, cem mil mortos são uma estatística. A substância contida nesta sentença é a de que uma vida pode ser sempre reconduzida à sua história, aos que lhe são próximos, ao que deixa para trás. Mas um exercício desta natureza é virtualmente impossível quando o número de vítimas aumenta exponencialmente. Existe, de facto, uma dupla impossibilidade. Em primeiro lugar, porque é absolutamente impossível reter na memória a história de vida de cem mil pessoas. Em segundo lugar, porque, se o fosse, o sofrimento associado à memória das vítimas, das suas vidas destruídas, das suas famílias desfeitas, da sua obliterada dignidade, seria humanamente insuportável.
A mecanização das fábricas de morte que caracteriza os campos de extermínio surge não tanto pelo apego nazi à ordem – apego, já de si, bastante sobrevalorizado – mas antes pela ameaça que os fuzilamentos dos esquadrões de morte representavam para o moral dos homens neles envolvidos. Ao encarar de frente os olhos das vítimas sobressai a vida, a individualidade, eclipsando-se o número e a abstracção.
Focar a atenção, quando se fala nas mortes associadas ao nazismo, nos números e na confiança que eles merecem é falhar o que é mais importante nesse período negro da história mundial. Apurar os números correctos é tarefa para historiadores sérios e empenhados. Mas existe uma visão mais abrangente do que os números, que ultrapassa a disciplina da história e pertence, acima de tudo, aos domínios da filosofia e da moral. Os números assumem uma importância secundária quando comparados com o aspecto que constitui a essência do terror nazi: o processo.
O processo de actuação nazi, fundamentado na sua fantasiosa ideologia racial, caracterizou-se sempre pela exclusão. Foram excluídos os judeus, os ciganos, os eslavos, os comunistas, os homossexuais, os deficientes e os doentes mentais. Se o resultado da guerra tivesse sido favorável aos nazis, a seguir preparavam-se para excluir todas as pessoas com insuficiências cardíacas e pulmonares. A essência do totalitarismo é o perpétuo movimento. É necessário que o processo de exclusão nunca esteja concluído, que exista sempre um novo alvo, definido ao sabor das necessidades do momento.
Em conclusão, saber se morreram exactamente seis milhões de judeus nos campos de concentração nazis não é tão importante quanto é a noção de que todos estamos incluídos no rol de potenciais vítimas de um regime desta natureza. É o processo que é fundamental – a necessidade de matar, de excluir social e biologicamente, para continuar a afirmação do regime.
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