Wednesday, December 27, 2006

O Vaticano e a eutanásia (II de III)

Como a eutanásia tem cobertura legal em pouquíssimos países, sendo que Portugal e Itália não estão incluídos nessa lista, talvez faça sentido dizer que, em muitos casos, se levanta um problema jurídico. Mas as complicações não terminam aqui. A eutanásia é, antes de mais, um problema moral. Não surpreende, portanto, que as críticas mais violentas provenham ou do Vaticano ou de sectores da sociedade a ele ligados. O cristianismo católico, como, de resto, todas as grandes religiões, intersecta os seus princípios religiosos com princípios morais. O correcto relacionamento com Deus, para além da prática religiosa, depende igualmente da adopção de uma determinada linha de conduta moral.

A faceta doutrinária e dogmática da religião desemboca, com poucas excepções, numa generalização ilimitada dos seus princípios. A palavra católico significa, simplesmente, universal e remonta aos tempos em que os primeiros cristãos discutiam se a sua religião pertencia a todos ou se se destinava apenas a alguns eleitos. Por muitos diálogos ecuménicos que se tenham promovido no final do século XX, o Vaticano continua a considerar, essencialmente, que detém uma visão correcta, verdadeira e última de Deus, da religião e da humanidade. Nesse sentido, o proselitismo é-lhe intrinsecamente natural. Seria mesmo ingénuo admitir o contrário. Acontece que, se é certo que a influência judaico-cristã é a mais importante para o mundo ocidental, quer na sua duração quer nas mentalidades que forjou, também é verdade que a modernidade ocidental deve as suas bases ao secularismo, à separação entre a esfera da religião e as esferas do Estado, da Ciência e da Justiça e ao reforço da componente do livre arbítrio do indivíduo. Existe, pois, uma certa contradição entre aquilo que são os princípios que fundamentam a modernidade ocidental e os princípios que defende uma entidade como o Vaticano. A Igreja Católica criou, desde o início, uma estrutura profundamente dependente da autoridade hierárquica, a qual continua em vigor. É precisamente esta estrutura hierárquica e autoritária, da qual emanam as doutrinas, aliada à perda de influência junto da sociedade, que entra em rota de colisão com um indivíduo cada vez mais consciente da sua independência e do seu poder de decisão. Sem duvidar que todas as transformações sociais que a modernidade introduziu provocam muito mais dúvidas do que certezas e podem ser causa de um sentimento de perda de referências, não deixa de ser perfeitamente claro que o desfasamento actual entre o Vaticano e a realidade social dominante da modernidade ocidental constitui muito mais um factor de crise para o primeiro do que para a segunda.