Monday, October 02, 2006

À espera

Após quase duas horas sem a médica aparecer, a sala de espera do Centro de Saúde começou a impacientar-se. Os comentários do costume subiram de tom progressivamente: “que era inadmissível, que era uma falta de respeito, que é sempre a mesma coisa, que a culpa é dos sindicatos, que é do governo, etc.”. Pelo meio não faltou quem assegurasse que o atraso se devia ao facto de os utentes do Centro de Saúde estarem, naquele preciso momento, a ser preteridos pelos utentes do consultório particular que a senhora doutora mantinha a poucos quarteirões de distância. Foi nesse momento que uma das pacientes mais críticas desabafou: “Se fossemos nós fazíamos o mesmo, não é?”.

Se a médica estava atrasada por se encontrar no consultório particular quando devia estar no Centro de Saúde ou se houve algum lamentável imprevisto não se sabe ao certo. Se foi pelo primeiro motivo, o seu profissionalismo está muito aquém do que é de esperar, sobretudo num profissional de saúde, devido às inerências específicas deste meio. Se for este o caso, para além do mau profissionalismo demonstrado, fica por saber que tipo de consequências acarreta este comportamento, se é que acarreta alguma consequência. Fica por saber, portanto, que mecanismos de responsabilização existem e se são efectivamente postos em prática, ou se tudo passa impune.

Mas o que é, talvez, o ponto mais interessante deste pequeno episódio é aquele incrível comentário feito por uma das utentes na sala de espera. Um comentário daqueles muda completamento a perspectiva para compreender o que se passou naquela tarde. A falta perante um compromisso de trabalho é mais do que a ausência de escrúpulos de uma pessoa e é mais do que a incapacidade de punir devidamente esses actos. Este caso mostra que a irresponsabilidade e a desresponsabilização alastram a todos os vértices do sistema, incluindo os seus utentes.

Maus profissionais há um pouco por todo o lado, em todas as profissões. Há-de continuar a ser assim, embora se possa desejar, com toda a legitimidade, que essa realidade venha a diminuir. Mas aqui há mais do que maus profissionais. Há, sobretudo, um problema generalizado de cultura cívica. A mulher da sala de espera é um exemplo de uma forma de estar que compactua com o estado das coisas, com o desrespeito pelos direitos dos outros e com os aproveitamentos ilícitos. Este tipo de pessoas não se indigna quando estão a ser cometidas injustiças. Indigna-se quando estas os afectam directamente. E, no seu íntimo, lamentam não ter a oportunidade de poder fazer o mesmo.

--------------------

Houve também quem tenha dito que se toda a gente reclamasse, as coisas não se passariam assim. O livro de reclamações, que todos os serviços públicos estão obrigados a disponibilizar, continha, até àquela data, apenas três reclamações. Depois daquela tarde passou a contar com mais uma, mas não graças a nenhuma das pessoas que se mostravam aparentemente tão indignadas. Nem mesmo àquela que achava que se todos reclamassem, as coisas seriam diferentes.