A 12 de Junho de 2000, o Rio de Janeiro assistiu ao que se tornaria um dos sequestros mais documentados de sempre, o qual terminaria de forma trágica, com a morte de uma das reféns e do próprio sequestrador, este às mãos da polícia, dentro de um carro de transporte, quando era já encaminhado para a esquadra. Dois anos mais tarde, as intermináveis horas de directo que as televisões emitiram naquele dia foram enriquecidas com um lote de entrevistas a pessoas directa ou indirectamente relacionadas com os acontecimentos e com a vida do sequestrador, dando origem ao documentário Onibus 174, da autoria de José Padilha.
Padilha não se limita a descrever exaustivamente os acontecimentos de 12 de Junho. Mais do que isso, estabelece uma biografia de Sandro Nascimento – o sequestrador – e um retrato amplo do que são o sistema policial, o sistema judicial, o sistema prisional e o sistema social do Brasil, em geral, e do Rio de Janeiro, em particular, para enquadrar o tema da violência urbana nos países em desenvolvimento. Este retrato resulta muito crítico e evidencia algumas questões incontornáveis. Alguns especialistas entrevistados referem o fenómeno da violência urbana e da marginalidade como fruto de uma estratégia de visibilidade desenvolvida pelos excluídos. Numa sociedade que se recusa a conceder-lhes espaço, que se recusa a encará-los e que chega a agradecer o trabalho sujo desempenhado pelos esquadrões da morte, como o que actuou no massacre da Candelária (do qual Sandro Nascimento foi um dos sobreviventes), a violência é a forma que as crianças e os adolescentes sem-abrigo encontram para ganhar reconhecimento. Trata-se de uma estratégia de afirmação puramente negativa, destinada a funcionar pelo choque que não pode deixar de causar. Mas o aspecto porventura mais interessante que o documentário de Padilha revela é uma igualmente brutal ausência de esperança para os excluídos. Não só não têm lugar, não só não têm visibilidade, como enfrentam forças policiais, tribunais e sistemas prisionais que atingem uma desumanidade atroz. O destino de muitos condenados são celas de prisão com menos de 20 m2, onde se chegam a amontoar mais de 50 presos, em espaços quase desprovidos de luz natural e onde a temperatura ambiente ultrapassa quase sempre os 40º. As instituições de reinserção, para onde são enviados os menores, são locais de violência generalizada, quer seja entre os jovens, quer seja pelos abusos sobre eles cometidos pelos profissionais que lá trabalham. Estas instituições não só não têm qualquer vocação de reinserção como funcionam como escolas de criminalidade e de marginalidade. O nível de corrupção e de violência gratuita das forças policiais é assustador e os tribunais incorporam muito menos o espírito de justiça do que os preconceitos sociais vigentes. Entrar neste sistema significa nunca mais sair dele. O túnel não tem nenhuma luz ao fundo e o caminho é sempre a descer.
O documentário de José Padilha tem ainda o mérito de conceder uma identidade ao sequestrador, resgatando-o dos preconceitos e dos juízos pré-formatados. Existe uma vida, uma biografia, por detrás da adjectivação rápida. Sandro Nascimento – o sequestrador, o criminoso, o toxicodependente, o marginal – é, antes de uma colecção de epítetos, um ser humano com uma história, com um trajecto, com um meio envolvente onde cresceu, sem o qual qualquer análise deixa de fazer sentido. O último dia de vida de Sandro Nascimento não é o resultado simples das acções de um louco ou de um drogado. É a soma de um conjunto de circunstâncias e de acções de diversos protagonistas.
A vida e morte de Sandro Nascimento são objecto de problematizações e de teorias, mas não são, em si mesmas, uma problematização nem uma teoria. Dos muitos disparates que Pedro Arroja lançou naquela entrevista publicada há mais de uma década, uma boa parte deles tem o mesmo fio condutor, que é redução da realidade social a uma teoria. A visão de Pedro Arroja sobre o mundo e o Homem ilustra uma forma de observar a realidade como se através de um prisma, decompondo-a sem nunca voltar a juntar as suas diversas partes constitutivas. Tudo se resume ao livre arbítrio do indivíduo e a uma teórica igualdade de circunstâncias. O social surge, nesta forma de o encarar, como desprovido de interdependência entre os seus membros, como se as acções de uns não fossem relevantes para a conduta de outros, como se as oportunidades fossem iguais para todos, como se o jogo não estivesse viciado, aliás, como se o jogo não fosse, sequer, passível de ser viciado.
Mais ainda, esta forma de encarar o mundo revela um princípio moral que coloca a teoria num patamar infinitamente superior àquele em que coloca as pessoas. O que acontece efectivamente às pessoas, as condições objectivas de existência que possuem, não têm qualquer relevo perante a importância concedida à teoria. A miséria e a ausência de dignidade humana são danos colaterais aceitáveis, desde que, globalmente, a economia, por exemplo, tenha um bom desempenho. O que este raciocínio não reconhece – e o que acaba por ser o seu maior sofisma – é que as teorias, ao contrário das pessoas, são meros exercícios de raciocínio abstracto, totalmente intangíveis. Não são as pessoas que devem trabalhar e sacrificar-se para o bom funcionamento da economia. É o bom funcionamento da economia que deve trabalhar para o bem-estar dos indivíduos. A Humanidade não é uma soma de indicadores e a dignidade do ser humano nunca poderá deixar de ser um factor absolutamente prioritário.