O CDS-PP apresentou um projecto de lei que pretende baixar a idade de inimputabilidade de menores. Esta situa-se, actualmente, nos 16 anos, sendo que o CDS-PP propõe os 14 anos.
Deixemos de lado as considerações sobre a idade a partir da qual se deve considerar um menor imputável, não porque seja um assunto desprovido de interesse, mas sim porque existe um outro aspecto que se mostra muito relevante e que é a fundamentação do projecto.
O que sobressai da exposição de motivos do projecto de lei do CDS-PP é uma ideologia muito definida, palpável na lista de justificações da criminalidade juvenil e nas soluções escolhidas. Vários motivos são apontados pelo grupo parlamentar do CDS-PP, alguns deles, seguramente, com propriedade. Mas, perante a identificação de causas que se prendem, aos olhos dos deputados do CDS-PP, com “sociedades de baixa qualidade de vida nas periferias urbanas; políticas de emprego que não conseguem vencer a dificuldade em encontrar o primeiro posto de trabalho; sistemas educativos em que a instrução para o civismo é deficitária e a autoridade do professor não está defendida; a progressão galopante do «ciclo da toxicodependência», cuja criminalidade associada é manifesta; a inexistência de políticas familiares que devolvam aos pais tempo disponível para os seus filhos, respectiva educação e acompanhamento, e que são responsáveis pelo relativo abandono afectivo dos menores em tenra idade”, não deixa de ser curioso que surja uma iniciativa legislativa que aponta directamente à idade de imputabilidade, ao invés de se assistir a iniciativas direccionadas a montante, combatendo as causas sociais referidas.
O que transparece, então, apesar do discurso envolvente, é a preferência por uma deriva repressiva e autoritária. Se quem avança com um projecto destes conhece minimamente a realidade das instituições de reclusão, sejam elas para menores de idade ou para adultos, deve saber que estas funcionam mais como instrumento de perpetuação da condição de exclusão, de marginalidade e de delinquência do que de outra coisa qualquer. Embora se possa discutir a justiça de se reduzir o limite etário da inimputabilidade, discussão onde os especialistas de desenvolvimento cognitivo terão uma palavra importante a dizer, custa a perceber que esse seja um caminho prioritário em detrimento de outro género de intervenções.
É sobretudo interessante verificar como a “baixa qualidade de vida nas periferias urbanas” surge completamente descontextualizada da realidade social a que se reporta, como se, para além de realidade factual, constituísse uma inevitabilidade social que não tem correspondência com as políticas económicas e sociais de um país ou de um município. Por outro lado, as “políticas de emprego que não conseguem vencer a dificuldade em encontrar o primeiro posto de trabalho”, assumem uma faceta paradoxal neste contexto em que se identifica a tipificação etária como indo dos 13 aos 15 anos, portanto, no limiar ou abaixo da idade activa, ou quando se sabe que os comportamentos delinquentes são muitas vezes frequentes em idades inferiores aos 10 anos.
Nunca a desigualdade social é referida como motivo de criminalidade, nem o são os indiscutíveis traços culturais de consumo e de materialismo das sociedades ocidentais. Tal como Ulrich Beck referiu, a propósito dos distúrbios vividos em cidades francesas no ano passado, toda essa conflitualidade e actos de delinquência não radica num défice de integração, mas antes no sucesso da assimilação desses valores dominantes e no desfasamento de oportunidades para aceder a uma participação na criação e distribuição de riqueza da sociedade.
Seria importante recordar, a este propósito, que em Portugal o fosso entre ricos e pobres não cessa de aumentar, que o poder de compra das classes médias e baixas diminui consecutivamente de ano para ano, que o salário mínimo é de 385,90€ e que um número considerável de pessoas se vê obrigada a recorrer ao multiemprego para assegurar um limiar mínimo de condições de vida, o que acarreta consequências lógicas ao nível de tempo disponível para si e para a família. Muito mais relevante, então, seria um debate, não sobre a idade da imputabilidade, mas sobre a contínua aposta na desqualificação dos trabalhadores e em políticas de salários baixos, a falta de preparação e de competitividade das chefias e dos empresários, a incapacidade crónica de fazer chegar a ajuda a quem mais dela precisa, o afastamento de um número cada vez maior de pessoas dos centros de decisão e de acesso à riqueza. Uma discussão, no fundo, sobre todo um modelo de sociedade que se tem vindo a implementar com os resultados que se conhece.
Monday, June 05, 2006
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