Cabeza de Vaca
Álvar Núñez Cabeza de Vaca, conquistador espanhol do século XVI, naufragou ao largo da costa do actual estado do Texas em 1528. Juntamente com alguns companheiros de viagem, viveu os seis anos seguintes entre os índios dessa região, adoptando uma boa parte dos seus modos de vida. Tendo granjeado reconhecimento entre as populações, desempenha uma função de comerciante, deslocando-se da costa para o interior, e vice-versa. Mais ainda, os índios convencem-se dos seus poderes curativos e Cabeza de Vaca, não mais do que à custa de uma mistura de ritos tradicionais indígenas e Pais Nossos e Avés Marias, como ele mesmo refere, passa assim a exercer a função de xamã.
Movido pela vontade de encontrar os seus, e depois de uma quase inacreditavelmente longa caminhada de dois anos, alcança as terras do México, onde a conquista espanhola segue em ritmo elevado. Finalmente, o desejo de reencontrar os seus compatriotas e a possibilidade de voltar a pisar solo espanhol são uma realidade. Ainda regressará às Américas, não só como explorador, mas também como governador do Vice-Reino de Rio de la Plata. Aí incompatibiliza-se com os abusos cometidos sobre os índios e acaba destituído das suas funções.
A interessante história deste homem excede as peripécias das suas viagens. Cabeza de Vaca é um dos conquistadores espanhóis que decide relatar para a posteridade a sua visão das conquistas. É nesse campo que se torna mais notável. Natural de Espanha, acaba por encontrar e viver durante um largo período numa cultura completamente estranha ao mundo que até aí conheceu. Apesar do nível de integração cultural que alcança, nunca esquece a sua terra natal nem o desejo de a rever. Nos relatos sobre esses agitados anos, a utilização do "nós" vai balançando entre o lado dos espanhóis e o lado dos índios. Até que, por fim, o indeciso "nós" acaba substituído por um "eles" comum a ambos os lados.
Tendo vivido as duas culturas, não renegando explicitamente nenhuma delas, é como se Cabeza de Vaca, de forma paradoxal – ou talvez não –, deixasse de se conseguir incluir nos dois mundos que retrata. Para ele, perante a experiência da alteridade, já só resta a exterioridade.
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