A reacção
Parece que Salazar reuniu 70.000 votos, o que é bastante diferente de dizer que votaram nele 70.000 pessoas. Nas condições em que se processava a votação, cada pessoa podia votar um número de vezes proporcional ao número de telefones que tivesse à mão. Assim não se mede nada. A validade é nula e nem vale a pena perder mais tempo com isso.
O maior interesse desta pequena questão está nas reacções. Há quem se tenha surpreendido, há quem se tenha indignado, há quem considere que se fez justiça e há quem acredite que estamos perante um sinal dado ao regime democrático que vigora. Esta última perspectiva, a dos críticos da III República, é a mais curiosa. Querem fazer crer, e já não é de agora, que o regime está podre, que é licencioso e desregrado. Que faz falta uma mão firme, que isto só lá vai com um espírito disciplinado e sério, que imponha respeito e decoro. O sebastianismo vive. Não faz falta D. Sebastião, como não faz falta Oliveira Salazar. O que faz falta é um Salazar. Isto é, não se trata tanto de um culto de determinada personalidade quanto do culto de um modelo de actuação.
Isto é muito salazarista e é muito português. De resto, a justaposição destas duas características é o maior triunfo da ditadura, ao conseguir, de forma tão indelével, forjar nas mentalidades portuguesas as atitudes sociais de que dependia para sobreviver. Os que criticam e clamam pelo fim deste regime não esperam o retorno de Salazar. O que esperam é que alguém ponha mão nisto. Esperam uma ordem diferente. Esperam que alguém tome a tarefa para si. Esperam, porque isso lhes permite demarcarem-se desta liberdade que não entendem e entregar nas mãos de um só um trabalho que é de todos. Em última análise, querem demitir a população das suas responsabilidades e abrir alas para uma espécie de salvador da pátria e nem sequer percebem que estão a demitir-se simultaneamente das suas responsabilidades e que nada garante que a ordem e a moral desse salvador venham a ser aquelas que advogam.
Não, o problema não está no regime democrático e nas suas liberdades. Está nas pessoas que não sabem viver nele.
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