A condição do regime
Os regimes apodrecem por dentro. São minados e atacados a partir do seu interior. Minados pelas más práticas e atacados pelos sempre atentos populismos, em busca da sua oportunidade mediática. Contudo, é preciso não confundir o regime com os seus actores. Da mesma forma, é preciso não tomar o todo pelas partes. Não se pode esperar, excepto se se partilhar um conjunto de valores que não são os de um Estado de Direito, que se erradique definitivamente o erro – involuntário ou deliberado. As anomalias são uma característica intrínseca do funcionamento social e a economia, a política e o direito são instituições sociais. As sociedades devem preparar-se para minimizar essas anomalias e para responsabilizar os seus agentes, mas não podem querer tornar real uma utopia que encerra o princípio perigosíssimo de serem os seus membros tão iguais entre si ou tão receosos do Estado que ninguém arrisque quebrar regras.
O JPT, num comentário a um post no Quase em Português, faz uma análise à situação do regime. Para ele, o regime e as suas instituições não existem para além das suas condições de exercício. Mais ainda, os desvios existentes são regra e não excepção, produto de “condições sociológicas”, de “condições práticas do exercício do poder e da reprodução de grupos particulares e particularísticos nas redes do estado e do estado-economia”.
A visão que o JPT lança sobre este tema merece reflexão. Mas só pode ser aceite se se concordar com os termos em que é colocada. Se é certo que há exemplos claros de apropriação do aparelho do Estado por interesses particulares, a coberto, ou não, de capas partidárias, é preciso dar atenção a outros aspectos, tão ou mais relevantes. Desde logo, perceber que essas condições sociológicas são condições disseminadas na sociedade de uma forma geral, no tipo de laços sociais que se geram e nas hierarquias de valores que imperam. Nessa medida, se o problema está na sociedade, nos indivíduos (em rigor: em alguns indivíduos), não se pode esperar que uma simples mudança de regime produza efeitos diferentes com os mesmos actores sociais. Depois, tal como já referi, é preciso não tomar o todo pelas partes. Existem desvios, porém estes não derivam da lei, mas da sua aplicabilidade. O erro é mediático, mas não constitui a regra. Se assim não fosse, esta seria uma sociedade inviável. Apesar dos seus defeitos, ainda se vai aguentando e progredindo. A passos mais lentos do que por vezes gostaríamos, mas progredindo.
O regime e as suas condições de exercício estão intimamente ligados, mas não são uma e a mesma coisa. A diferença pode aferir-se nos produtos de regimes tão opostos como a democracia e o totalitarismo. Apenas o primeiro reúne as condições necessárias para que as populações conheçam e participem activamente, de uma forma responsável e informada, no projecto de gestão do presente e construção do futuro da sua sociedade. Apenas a democracia permite canais de troca de informação e a sua validação. Apenas a democracia permite a responsabilização e a substituição dos dirigentes políticos. Não que isso seja uma realidade factual sem mácula. Não é. Mas a acontecer, num destes regimes, não será com certeza no totalitarismo.
A democracia não é perfeita, não é o fim da História e pode ser pervertida por interesses menos claros. Mas está mais longe de ser o sistema fraco e debilitado que por vezes a fazem parecer. Encerra em si um potencial enorme que não pode ser menosprezado de ânimo leve. Neste campo, um pouco de conservadorismo não é desajustado, antes de se embarcar num aventureirismo a troco de revoluções e de se tomarem pequenos déspotas iluminados por líderes salvadores.
Os regimes são corroídos por dentro e o mal que lhes pode ser infligido não deve ser negligenciado. Mas são tão nefastas as más práticas como a confusão entre o infractor e a instituição de que ele abusou. Os autoritarismos podem pouco enquanto não lhes abrirem as portas da frente. Nisso, o tom acusatório contra o regime cumpre a função bastante bem e é por isso que se aconselha um pouco mais de responsabilidade.
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