Wednesday, November 23, 2005

É extremamente difícil traçar a linha da liberdade de acção do indivíduo. As nossas acções sofrem constrangimentos sociais que as condicionam, mas, em última análise, dependem em boa medida da nossa vontade de as concretizar. Todos crescemos num qualquer meio social onde interiorizamos normas pelas quais passamos a pautar a nossa vida. Mais ainda, o que interiorizamos neste processo não são somente normas, são "as normas". Obviamente, num ou noutro momento da nossa vida acabamos por perceber que as normas que interiorizámos são apenas um dos conjuntos de um leque bastante mais alargado. Nessa altura podemos reequacionar o nosso posicionamento em relação às normas pelas quais nos regemos, podemos tomar opções, alterar o nosso sistema de referência ou aprofundar as nossas convicções. Estamos sempre a tempo de o fazer. O social é uma construção e, como tal, está permanentemente aberto a mudanças.

Mas uma das insuficiências em que as ciências sociais caem frequentemente é esquecerem-se que a realidade do ser humano não se esgota no social. De alguma forma que, verdade seja dita, não cabe às ciências sociais explicar, o meio social interage com a biologia do ser humano. Em Portugal, ao contrário do que acontece, por exemplo, na China, não se comem cães. Acredito que a maior parte da população não esteja disposta a quebrar esta regra de ânimo leve. E que, levada a fazê-lo, sentiria uma genuína repugnância pelo acto. Por outro lado, uma lesma de aspecto repelente como o caracol consta do cardápio de inúmeros cafés. Com bastante sucesso, acrescente-se.

A capacidade racional e o livre arbítrio do ser humano são, por vezes, sobrestimados. Existem, é um facto, mas condicionados por vários factores, dos quais as ciências sociais só conseguem compreender uma parte. Além disso, apesar do conhecimento efectivo que as ciências sociais trazem sobre o mundo em que vivemos, é preciso ter em conta que as generalizações são sempre abusivas. Nem se pode dizer que determinada situação é passível de gerar o mesmo tipo de reacções em todas as pessoas, nem se pode dizer que uma pessoa reage de forma semelhante a diferentes situações. O determinismo é uma doutrina que as próprias ciências sociais já renegaram há muito tempo.

Vem isto a propósito dos posts no Quase em Português sobre a duplicidade da moral burguesa. Não nego que seja possível estabelecer os contornos da moral burguesa, por muito difusos que sejam, tal como não nego que não faltarão exemplos de hipocrisia social nesta moral como noutras. Mas uma coisa é a hipocrisia e outra será a cegueira. A hipocrisia pressupõe um grau mínimo de consciência sobre os factos e uma conduta orientada para as soluções mais convenientes do ponto de vista do indivíduo em causa. Por seu lado, a cegueira, a qual não se pode igualmente recusar, é constituída por uma imersão profunda num qualquer referencial normativo. Se se quiser, um nunca deixar de considerar as normas interiorizadas como "as normas" tout court. Recusar esta realidade é o mesmo que admitir que amanhã o bife de cão será tão popular como o bife de vaca apenas porque os talhos passam a explicar aos clientes que, no fundo, é tudo carne comestível.