Tuesday, November 07, 2006

No fim, o vilão morre

Os thrillers de Hollywood apresentam uma regra sagrada: no fim, os maus morrem. Como todas as boas regras, esta admite honrosas excepções. Mas, geralmente, não há blockbuster que se preze que não obedeça a este imperativo. Os estúdios de Hollywwod regem-se muito menos por critérios artísticos do que por critérios financeiros. Os filmes devem gerar uma receita apreciável, pelo que não só não podem afrontar a sensibilidade do espectador médio com têm de ser apelativos para um número muito significativo de pessoas. Nesta perspectiva, é razoável acreditar que o enredo e o desfecho correspondam a encenações com as quais o público se sente mais confortável.

A morte do vilão no fim do filme possui duas componentes. Uma que se prende com uma espécie de encerramento definitivo do problema. A outra tem a ver com um certo sentido de justiça. Por um lado, a morte aparece como a solução que resolve os problemas. A ausência permanente do prevaricador pressupõe o fim da prevaricação. Não vale a pena perder muito tempo para explicar a falácia desta suposta causa-efeito. Quanto muito, poder-se-ia dizer que a relação é válida para o caso concreto abordado, sendo perfeitamente ingénuo extrapolar o que quer que seja além disso. Por outro lado, a morte do vilão é a consequência esperada e merecida para as suas vilanias. Talvez porque a audiência dispõe das verdades que o enredo revelou, dispensa-se o julgamento e aplica-se imediatamente a pena. A morte do vilão, por mais que surja em contextos acidentais ou de auto-defesa do herói, corresponde sobretudo a uma moral. O crime não compensa e a consequência natural é a perda da vida. A morte surge, assim, como uma pena adequada e justa. O mundo do cinema é um mundo de liberdades criativas e ficcionais. Mas, dada a importância que o sucesso de bilheteira assume, não deixa de ser um indicador informal sobre as sensibilidades das audiências.

Se abandonarmos o mundo ficcional e regressarmos à realidade, constatamos que a pena de morte é aceite e praticada em diversos países. O mais recente e mediático condenado é Saddam Hussein, por crimes contra a humanidade. Hussein incorreu numa acusação gravíssima, mas a pena de morte também pode ser aplicada por razões como traição à pátria ou assassinato.

Muitas vezes se ouve argumentar contra a pena de morte invocando o erro judicial. Com efeito o simples reconhecimento que a justiça é falível, como qualquer outra empresa do ser humano, devia servir para questionar seriamente uma pena que não pode ser revista depois da sua aplicação. Tomemos como garantido que o veredicto de culpado é justo. Isso permite que não confundamos o foco do problema. Não se discute aqui o veredicto, ou a sua justiça, mas a pena aplicada e a sua razão de ser. Mais ainda, embora o erro judicial se apresente como um obstáculo praticamente intransponível para a aceitação sem reservas da pena de morte, é um argumento que nos remete mais para a substância do que para a essência, mais para o facto do que para o princípio. Se admitirmos que um dia será possível extirpar o erro da acção policial e judicial, teremos igualmente que admitir que a pena de morte deixa de contar com esse entrave.

Assim sendo, a pena de morte deve ser abordada, sobretudo, numa óptica de justiça e adequação da pena. Ou seja, o que nos devemos perguntar é se em algum caso concebível será a pena de morte adequada – equacionando, por exemplo, a gravidade do crime e a certeza do veredicto. Nesta perspectiva, continuará a haver quem defenda a sua aplicação, tal como continuarão a existir razões profundas para a contestar.

O principal motivo para contestar a pena de morte não se prende tanto com o erro judicial, mas com a essência de pena. A pena de morte representa uma medida penal puramente vingativa. Não se pode ignorar a função de castigo que o sistema penal desempenha, nem a sensação de segurança de que os cidadãos gozam por terem um sistema de justiça eficaz. De igual modo, a aplicação da justiça induz um sentimento de gratificação generalizado na sociedade. Os crimes não devem, em caso algum, deixar de ser julgados e punidos, sob pena de se assistir à desintegração do tecido social. Mas pensar exclusivamente em termos de retribuição do sofrimento e das ofensas causadas aos membros da uma sociedade não nos torna muito diferentes dos criminosos que condenamos. O filósofo Immanuel Kant defendeu que os seres humanos devem ser tratados como um fim e nunca como um meio. Para Kant, o ser humano possui uma dignidade e uma racionalidade intrínsecas, as quais devem ser respeitadas acima de tudo e em qualquer caso. Se recordarmos igualmente o famoso imperativo categórico “age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal” resulta uma perspectiva da justiça inteiramente retributiva. Os criminosos devem ser castigados e na mesma medida em que ofenderam a sociedade. A pena de morte, neste caso, é justificada pela escolha racional do criminoso. A sua aplicação limita-se a estabelecer uma correspondência entre a acção criminosa e a sua consequência. O criminoso, ao decidir agir de certa forma, admite que essa acção possa ser executado contra ele próprio. Parece existir, de facto, uma aproximação entre a sociedade e o criminoso quando se age de acordo com o pensamento de Kant. Mas que aproximação é essa?

Um castigo induz inevitavelmente sofrimento. Por isso, é necessário que esse sofrimento se encontre perfeitamente justificado, ou, pelo menos, fundamentado na melhor justificação que a razão humana consiga produzir. A pena de morte radica numa concepção retributiva da justiça. Não é muito mais civilizada que o “olho por olho” bíblico. Se as acções de uma pessoa se tornam um perigo para a sociedade é justo e adequado que essa pessoa seja afastada da sociedade. É justo e adequado que se encontre uma pena que cumpra este desígnio e que restaure o sentimento de segurança. Como facilmente se percebe, as penas de prisão cumprem bastante bem este propósito. A pena de morte, ou, já agora, as punições físicas, não acrescentam nada que não seja a referida acção retributiva, baseada no mais puro sentimento de vingança. Condenamos os maus-tratos físicos, os abusos e o assassinato porque nos sentimos ofendidos com essas condutas em sociedade. Aceitá-las como imanando da escolha da própria sociedade acaba por ser uma deturpação brutal e uma contradição insanável do sentido de justiça.

Kant tinha razão ao admitir que a pena de morte estabelece uma relação de igualdade entre a dignidade do condenado e a dignidade dos restantes membros da sociedade que o condenam. Só que, ao contrário do que pensava o eminente filósofo, talvez isso se devesse menos à elevação da dignidade do primeiro do que à queda da dignidade dos últimos. A inadequação e injustiça subjacentes à pena de morte não têm tanto que ver com o crime cometido, mas antes com o tipo de respostas que escolhemos enquanto sociedade.