Saturday, November 04, 2006

A anonimato é um tema recorrente na blogosfera. De blogue em blogue, encontro um post extenso, mas excelente, da Lolita sobre esse assunto. E, um pouco mais à frente, ainda que principalmente subordinada a outros assuntos, uma resposta do Luís Aguiar-Conraria a um texto de Eduardo Prado Coelho. Em apenas seis parágrafos, EPC consegue, entre outras coisas, associar a desenvoltura da escrita ("tu cá, tu lá") ao favorecimento do disparate, errada e maliciosamente apelidar de personagem anónima o bloguista Luís Pedro Coelho e ser insultuoso para Luís Aguiar-Conraria por, entende-se bem, discordar das suas opiniões.

Mais rapidamente se compreende um escritor como Lobo Antunes, que afirma preferir a sua escrita acima de todas as outras, do que um opinion-maker, que se reclama frequentemente humanista e de esquerda, que afirma "puxar da pistola" e "raramente falhar os alvos". Mas quanto a isto, já se sabe: presunção e água benta…

De todos os dislates que EPC reúne naquelas poucas linhas, dois temas assumem maior interesse. Em primeiro lugar, fica clara a ausência de rigor – já agora, também a ausência de empenho – no tratamento da informação, do qual o que é escrito a respeito do autor do Rabbit’s Blog é o melhor exemplo. Esta ausência de rigor e empenho é elucidativa não só sobre EPC, mas também sobre a ocupação do espaço da comunicação social. Os jornais e as televisões estão cheios dos mesmos comentadores há anos seguidos. Mas não se trata somente de incapacidade de renovação. Mais do que isso, trata-se de incapacidade de fornecer conteúdos de relevo. Nomes como, por exemplo, Luís Delgado, Carlos Magno, Pedro Santana Lopes, João Carlos Espada, José António Saraiva, José Manuel Fernandes e João César das Neves transitam dos jornais para os programas de televisão sem que, pela qualidade do discurso, pela riqueza do raciocínio, pela pertinência dos temas, pela profundidade da análise, justifiquem alguma vez o espaço que ocupam. De uma forma semelhante, as incoerências e os erros no tratamento das notícias são tão comuns que, supõe-se, já não surpreendem ninguém. As responsabilidades editoriais, como tantas outras neste país, não são para se assumir por inteiro. Aliás, a este respeito, Portugal é um país em que o fenómeno da responsabilização assume contornos tão grotescos que se torna perfeitamente viável enterrar governos, partidos, empresas, jornais, ou o que quer que seja, e continuar a fazer carreira profissional com sucesso, continuando a saltitar impunemente de uns locais para os outros.

Em segundo lugar, o texto de EPC é bastante claro na forma como equaciona a dicotomia entre o texto assinado e o texto anónimo. Ou, dito de outra forma, porque é a isso que tudo se resume, entre a existência de nome ou a sua ausência. A categorização é uma realidade iniludível da vida social e tem tanto de útil como de perigosa. Se, por um lado, nos fornece uma ferramenta que facilita a interacção social quotidiana, poupando-nos análises detalhadas através da construção estereotipada do contexto de cada situação, por outro lado, tende a criar vícios de raciocínio. Estamos habituados a associar à estereotipia as xenofobias, as xenofilias e toda uma panóplia de preconceitos sociais, raciais, sexuais e políticos. Mas a questão dos nomes tem aqui, igualmente, um lugar destaque. Numa sociedade em que as estatísticas mostram níveis preocupantes de insucesso e abandono escolar, de baixa escolaridade generalizada e de analfabetismo funcional, o trabalho de abstracção, relativização e análise crítica, indispensáveis para ultrapassar o preconceito, está irremediavelmente comprometido. Torna-se, assim, bastante difícil pensar o mundo e a solução mais fácil é adoptar uma postura acrítica das opiniões e das informações que circulam, recorrendo quase exclusivamente ao estatuto dos emissores para assegurar a veracidade e pertinência dos conteúdos.

É comum dizer-se que Portugal é um país de pequenas invejas, mas, se assim for, também o é, seguramente, de reverências feudais, quase servis, tão notórias nas formas deferentes de relacionamento. Um nome possui, assim, um peso e um papel importantíssimos. A reverência em relação à fama do nome, por oposição à reverência em relação ao conteúdo é um fenómeno fortemente enraizado. Um “bom nome” é fácil de publicitar e ajuda a vender muito mais. Um “bom conteúdo” nunca é tão imediato como um “bom nome” e exige espírito crítico para avaliar o seu mérito efectivo. Ora, o espírito crítico, obviamente, não convive muito bem com a reverência em relação à fama do nome. Se o primeiro exige que se perca tempo, que se pense, que se reflicta, que se tome decisões, esta última requer apenas aceitação, passividade e, quanto muito, alguma memória para reter o quem é quem essencial. A reverência é muito mais fácil do que o exercício da análise crítica.

Mais ainda, os nomes sonantes reforçam a legitimidade dos discursos de terceiros. Aliás, é sintomático que EPC refira os nomes que refere e nos termos em que os refere. Como Luís Aguiar-Conraria justificadamente reconheceu, existe muito de elitismo asinino nos insultos que EPC profere. Um elitismo, uma arrogância e uma desconsideração que são comuns aos traços grossos de uma certa mentalidade reinante. Neste capítulo, EPC não fala apenas por si. É o espelho de toda uma forma de estar na vida e de interagir com o outro, de ser insultuoso, malicioso e inexacto. São características que, obviamente, se podem encontrar nos blogues. Mas não são características dos blogues. São da sociedade em que eles surgem.