Thursday, May 18, 2006

Uma pessoa começa o dia a ler os seus blogues preferidos e dá com uma série de interrogações que lhe aceleram logo a actividade das little grey cells:
- Não é importante para uma pessoa saber quem é/era o seu pai? Mais: não devia isso ser um direito?
- Não é importante para uma pessoa saber que nasceu do desejo e do amor de um homem e uma mulher, ambos com nome concreto, história e raízes? Não é importante conhecer todas as circunstâncias da sua origem?
(...) e porque é que este filho há-de ficar para sempre preso ao enigma do seu pai biológico?!
Como é que isto se resolve a contento de todas as partes interessadas?


Ora, depois de muita actividade, sinto-me tentado a responder, respectivamente, da seguinte forma: depende, talvez, depende, depende, não sei e não sei.

Se o que é a vida de uma pessoa já constitui um enigma difícil de destrinçar, aquilo que essa vida poderá vir a ser assume um carácter ainda mais dúbio. Evidentemente, temos uma panóplia de ciências, os seus corpos teóricos e os seus conhecimentos empíricos, que nos ajudam a prognosticar, com maior ou menor probabilidade, o que são os labirínticos caminhos da actividade psicológica e social do ser humano. Mas apontar um destino, uma forma de pensar, de sentir e de agir, entendidos num sentido determinista, não pode ser outra coisa senão um exercício de futurologia.

A socialização da criança, nos seus primeiros anos de vida, caracteriza-se por uma interiorização da realidade tal como é apresentada pelos agentes de socialização mais relevantes nessa fase, geralmente os pais. A realidade apresentada por esses agentes será entendida não como uma realidade específica – uma alternativa entre muitas –, mas sim como a realidade – um absoluto. Mesmo os primeiros contactos com outras realidades são pautados por esta interiorização, a qual ganha ascendente sobre elas, sendo as alternativas de vida encaradas como anormalidades. Tal como os estudos de Piaget deixaram bastante claro, algumas crianças colocam as "verdades" dos pais acima de tudo, incluindo, por exemplo, das "verdades" de Deus. Só no momento em que as competências de abstracção e relativização da realidade social se vão consolidando é que a comparação entre os diferentes mundos passa a ser feita em termos mais comuns à que é feita pelos adultos. Do jogo de influências entre o que está vivido e o muito que está por viver há-de resultar, então, uma forma mais coerente de analisar a realidade e de encontrar nela um lugar próprio.

Mas se estes são os traços largos dos primeiros anos de socialização, o seu resultado concreto está dependente de inúmeras variáveis, entre as quais se devem contar, as biológicas, as psicológicas e as sociais.

Desta incerteza resultam tantos "depende" como resposta às difíceis perguntas que a Helena postou no 2 Dedos de Conversa. Tais factos serão importantes se as circunstâncias em que a criança é educada levarem à construção dessa necessidade. E, a partir do momento em que ela existe, não há como recusar-lhe legitimidade. Mas apenas nesse momento, e não antes, o que seria mera projecção da forma de estar do observador.

É inquestionável que um ambiente familiar saudável possui estabilidade e amor em doses reforçadas. Agora, por quantas pessoas devem ser essa estabilidade e esse amor assegurados é uma questão bastante diferente. Uma família monoparental não tem, forçosamente, de ser uma família diminuída no seu amor e na sua solidez de laços. Será, porventura, uma família condicionada na desejável distribuição de tarefas. Mas a consequência lógica desse facto é mais trabalho e não menos amor. Aliás, uma família monoparental que funciona bem é incomparavelmente melhor do que uma família biparental que não funciona. Mais ainda, enquanto a monoparentalidade constitui uma família, a associação forçada de um dador de esperma a essa família não se sabe bem o que constituiria. Nesse campo, talvez a liberdade de decisão, o bom-senso e a ponderação sejam as melhores soluções.

A Helena diz que fica com uma série de pruridos éticos resolvidos se ficar claro que os progenitores biológicos têm deveres iguais em relação à criança, e a criança tem direitos iguais em relação a ambos. Mas, para terminar, pergunto eu agora, com um certo egoísmo, reconheço, porque estou a colocar o meu prazer em trocar ideias com a Helena à frente dos caixotes que ela tem de empacotar até Junho, pergunto eu, então, se o sexo ou o esperma conferem direitos? Ou não será antes o trabalho, o muito trabalho, todos os dias, um após outro, o material de que é feito um pai ou uma mãe?