Thursday, February 23, 2006

O que propus com o post anterior foi que se começasse a discutir o que está efectivamente a ser feito e os resultados reais das medidas que têm como objectivo o controlo do défice e o crescimento da economia nacional. Propus também que se começasse a equacionar seriamente os eventuais benefícios colhidos com tais medidas. A minha visão é, então, que quando, por exemplo, os bancos registam aumentos de lucros nunca antes vistos, mas ao nível do cidadão médio o desemprego dispara e os salários reais estagnam, não se pode de forma alguma defender que os resultados alcançados sejam satisfatórios. Se os sacrifícios que supostamente trarão a redução do défice e a produtividade que faz crescer o PIB só estão a alimentar os grupos financeiros, quais são as vantagens que a população realmente retira? Ou, dito de uma forma mais dura, o que interessa que a economia crie riqueza se não só não houver distribuição dessa riqueza, como ela estiver a ser alcançada à custa dos que menos tême em favor dos que mais possuem?

A questão das causas do défice, sobre as quais não me debrucei, é outra história. Uma coisa está relacionada com a outra, claro, mas não deixam de ser dois temas distintos. Tanta ineficiência de funcionamento e dos gastos do Estado tem, forçosamente, de causar alguma perplexidade. O dinheiro que se gasta não se perde, não desaparece simplesmente. Acaba a entrar na contabilidade de alguém ou de alguma entidade. Todas as más práticas que geram despesismo acabam por beneficiar alguém, independentemente de haver ilícito ou não. Como é óbvio, o volume de dinheiro que o Estado movimenta provoca muito interesse e é natural que as adjudicações sejam amplamente cobiçadas. Esse facto é iniludível e deve representar uma preocupação primordial para a sociedade no seu todo.

Não ignoro que existem regimes de excepção a mais na administração pública, muitos dos quais beneficiam apenas os altos cargos. De uma forma geral, os regimes de excepção e as regalias concedidas sem qualquer justificação e/ou sentido de bom senso, sendo injustificados, devem terminar. Mas também não é provável que sejam estas regalias a causar o maior dano financeiro ao Estado. Causarão dano moral e de credibilidade, sem dúvida, mas, ao nível financeiro, as maiores perdas concentram-se certamente nas más adjudicações, nos contratos ruinosos, na gestão danosa e na má defesa do interesse público em favor dos interesses particulares.

A meu ver, é aqui que se torna mais necessária uma acção correctiva. O problema é que vigora a concepção da redução dos custos fixos, ou da despesa corrente, como forma máxima de controlo da despesa. A qual, apresentando resultados, está longe de ser a única forma de controlar a despesa. A diferença reside em quem é mais prejudicado com cada uma delas. Ao reduzir na massa salarial e nas responsabilidades sociais do Estado saem prejudicadas as classes médias e as classes baixas. Ao erradicar as más práticas de gestão, aos diversos níveis já referidos, saem prejudicados os grupos empresariais que têm no Estado uma fonte de rendimento inesgotável. E, por que não reconhecê-lo, saem prejudicados os clientelismos e os partidos políticos que lucram directa e indirectamente com o assalto aos cargos de poder, com o tráfico de influências, com a corrupção e com os financiamentos encapotados a que assim acedem. Surge, então, uma segunda dificuldade que é a de ser necessário reformular um sistema tendo de recorrer a um dos agentes – os partidos políticos – que beneficia com o actual panorama.

Não pretendo adoptar uma postura hiper-moralizadora, para a qual não tenho convicção nem feitio, tal como não pretendo acusar toda a classe política de ser corrupta ou, no mínimo, mal formada. Mas as evidências apontam para uma realidade na qual o sector público tem vindo a beneficiar, de forma recorrente e muito pouco clara, determinados grupos em detrimento da esmagadora maioria da população. Perante a ilegalidade, é de importância fundamental adoptar medidas que limitem as oportunidades para o ilícito, ao mesmo tempo que se deve encontrar e punir adequadamente os infractores. Mas, para isso, é necessário também um sistema judicial a funcionar ao seu melhor nível, o que dificilmente se pode dizer que tenha vindo a acontecer recentemente. Assim, mais uma vez, para completar este longo périplo, voltamos a deparar-nos com a ineficiência dos serviços do Estado como principal entrave à prossecução do bem público. E, mais uma vez, as coincidências são mais que suficientes para que a desconfiança se imponha.

É seguramente difícil manter um nível de motivação com a causa pública quando esta parece não reverter a favor dos que dela mais necessitam. Torna-se difícil manter um nível elevado de interesse pela política quando os seus agentes parecem mais preocupados com os seus pequenos jogos e com os seus interesses particulares do que com o bem público. Por estas razões, talvez mais do que nunca, é necessário que os ânimos não se abatam, que o desinteresse não vença e que se exija mais e melhor. Não para a pátria, noção bacoca e abstracta, dada a interpretações numéricas dúbias, mas para as pessoas que neste país habitam. Deve ser para elas que a economia deve laborar.

(texto com origem no comentário ao post anterior)