Tuesday, February 21, 2006

Em 1998 ou 1999 conheci um estudante sueco, Adam de seu nome, que se encontrava a passar uns meses um Portugal. Ambos partilhávamos a curiosidade pelas realidades alheias e passámos algum tempo a discutir as idiossincrasias de cada pátria. Inevitavelmente, tínhamos de chegar à forma como se conduz neste país. Dificilmente esquecerei a sua expressão de horror, observando os carros a circular na Av. 24 de Julho, enquanto me ia dizendo em inglês: “São todos loucos, loucos!”.

Segundo ele, uma das nossas curiosidades era o hábito de chegar à mesa do café e gabar o reduzido tempo que se tinha gasto na viagem. Coisa rara na Suécia. Por princípio, conhecendo-se a distância e velocidade máxima permitida no percurso, existe um tempo mínimo abaixo do qual não é possível efectuar a viagem

Por cá, já se sabe, respeitar os limites de velocidade é para mulheres (ainda assim, nem todas) e para velhinhos de boné. As façanhas do volante são tópico de conversa comum.
Praticamente toda a gente tem um episódio mirabolante do qual escapou por um triz, ou uma multa por ter circulado a 180 km/h na A1, ou por ter sido apanhado a ultrapassar em local proibido a caminho do Algarve. Histórias que são contadas com um sorriso nos lábios para entreter os convivas que rejubilam em sonoras gargalhadas. Ou dito de outra forma, a vergonha e o desconforto são sentimentos que dificilmente surgem associados a estes comportamentos. Muitos são os que desrespeitam as regras do trânsito, mas poucos – pouquíssimos – os que se envergonham disso. As regras de trânsito são uma abstracção que cada um relativiza à medida da sua conveniência. E a sociedade vai sancionando esse comportamento. De resto, nem poderia ser de outra forma, pois a relativização das regras enquadra-se com toda a perfeição no seu código cultural, na sua valorização da chico-espertice, do desenrasca, da solução de recurso e do amiguismo.

Daí que compadrios como os que agora se conhecem na Metro do Porto e na BragaParques não sejam de espantar. Os mecanismos são os mesmos. Gente que se ajuda mutuamente, que vampiriza os dinheiros do Estado, os subsídios da EU e tudo o mais a que se puder agarrar. Gente que, assim, de solução de recurso em solução de recurso, de chico-espertice em chico-espertice, se vai desenrascando. E o que é que se pode esperar do Estado e da sociedade? Nada. Rigorosamente nada. Do primeiro porque se encontra minado de testas-de-ferro, de representantes dos mais obscuros interesses, que se comprazem com o mau funcionamento da máquina fiscal e do sistema judicial. Da segunda porque, na sua maioria, no seu íntimo, até admira os que conseguem contornar o sistema, os que defraudam o Estado, essa entidade indefinida e longínqua que não sabe bem para o que serve.

Democracia é, aqui, mais que uma palavra vã. É um simulacro. Se fosse uma palavra vã, as pessoas, ainda que em surdina, queixar-se-iam da sua ausência. Sendo um simulacro, convencem-se que o que têm diante de si é a realidade, quando, de facto, da realidade nunca conheceram senão meros vislumbres. O país está a saque e não há, sequer, quem se envergonhe disso.