Tuesday, January 17, 2006

Os que sempre foram contra a intervenção militar no Iraque foram muitas vezes apelidados de anti-americanos primários e acusados de comprometerem, com o seu pacifismo, como então se dizia, os nossos valores civilizacionais. Não faltou, nesses dias e daí para diante, quem tenha continuado a defender a política externa dos EUA, nomeadamente as vantagens do militarismo. Entre os que apadrinham esta linha de acção contam-se bons ideólogos, pelo que não é de estranhar que a tarefa de ordenar o discurso oficial tenha sido levada a cabo com cuidado. Palavras como terrorismo, guerra e liberdade têm sido incansavelmente repetidas. O objectivo é óbvio e as conotações são claras. Por um lado, numa guerra existem sempre os nossos e os deles, o que foi enfatizado praticamente desde o 11 de Setembro. Existiu e continua a existir uma tentativa de redução da realidade a dois campos perfeitamente distintos e antagónicos. Por outro lado, ao bramir palavras como terrorismo e liberdade colocam-se em cima da mesa opções perante valores morais amplamente consensuais nas nossas sociedades. Quem gostaria de ver-se automaticamente identificado com organizações terroristas ou como inimigo da liberdade? Estas concepções reforçam-se mutuamente e tendem a criar uma bipolarização que não tem outra finalidade que não seja a de obter apoio, quer seja popular quer seja político, para a prossecução do intervencionismo militar.

Entretanto, têm-se sucedido revelações sobre episódios que são tudo menos dignos na actuação militar no Iraque, assim como uma regressão nas liberdades, direitos e garantias dos cidadãos soba alçada do governo dos EUA. Ilustram estes casos os abusos perpetrados em Abu Grahib, a situação dos prisioneiros em Guantanamo, a existência de prisões secretas em solo europeu e, mais recentemente, a revelação de escutas telefónicas conduzidas sem autorização judicial. Qualquer uma destas situações prefigura um abuso cometido em nome da luta contra os abusos. O paradoxo é evidente.

Fazendo vista grossa a este paradoxo, mesmo perante as claríssimas faltas à verdade que serviram de justificação à guerra e os conhecidos abusos subsequentes, existe ainda quem se mantenha fiel a tal linha de actuação. Argumentam, até, que as críticas ajudam os interesses do terrorismo e associam a compreensão do fenómeno com a sua justificação. Ora, compreender não é justificar. Criticar um dos lados não implica necessariamente uma identificação com o outro. Censurar Hiroshima, Nagasaki e Dresden não pode ser considerado como uma defesa do que a Alemanha ou o Japão fizeram durante a Segunda Grande Guerra. Pelo contrário, é porque se criticam os bombardeamentos que tinham como único alvo a população alemã e japonesa que se pode igualmente criticar os sofrimentos infligidos pelos seus respectivos regimes aos povos ocupados nesse período. A moralidade não se pode reduzir aos lados de uma contenda mas sim aos actos por eles praticados. Evidentemente, o mesmo raciocínio aplica-se ao que se passa agora no Iraque, em Guantanamo ou nos EUA. É precisamente porque criticamos todas as mentiras e todos os abusos que têm sido cometidos que podemos indignar-nos com os atentados em Nova Iorque, Madrid e Londres, mas também com os que ocorreram e ocorrem em Israel, na Indonésia, no Iraque ou em qualquer outro lugar. A rejeição da violência, dos fundamentalismos e dos totalitarismos, para ser peremptória e inequívoca, tem de começar dentro das nossas fronteiras. Se optamos por abdicar das liberdades que alcançámos, afinal o que estamos a defender?